Capítulo 1

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Não consigo dormir. Os sons da festa na casa ao lado pene­tram pelas paredes e parecem ir direto ao meu cérebro. Acho que há alguns anos atrás não me incomodaria com esses deci­béis, mas hoje eles me irritam. Acho que realmente estou ficando velho.

Estou morando nessa cidadezinha há apenas duas semanas. Sou um escritor. Fiz isso toda a minha vida. Mas ultima­mente não tenho conseguido escrever um punhado de linhas que façam sentido. Então, vim para cá buscar a paz que ha­via perdido no meu antigo lar. Mas acho que o começo não está sendo muito promissor.

Pego o travesseiro e com ele cubro os meus ouvidos. Não adi­anta. A última coisa que quero é ter que bater na porta da vizinha e pedir que diminua o barulho. Mas eu sei como são os jovens. Hoje pode não parecer, mas já fui um deles. Com certeza não vão dar a mínima para o meu pedido e ainda vou me tornar a piada da noite deles.

Enfim, desisto de dormir nessa noite. Para alguém com sono leve como eu sei que será impossível.

Não sei o que me dá, mas decido espiar o que acontece ali ao lado. É errado, eu sei. Não sou nenhum voyeur ou algum tipo de pervertido. Mas apesar disso levanto da cama e busco meu potente binóculo que uso para observar pássaros. Não, isso não é uma desculpa. Eu observo mesmo pássaros. E esse foi o segundo motivo que me levou a me mudar para aqui. Cape May é um dos melhores lugares para se observar essas lindas criaturas em todos os Estados Unidos. Além disso, tem praia, que é o meu lugar favorito para relaxar cami­nhando. E não é longe nem da Filadélfia nem de Nova York, lugares onde posso ir quando tiver saudade do agito urbano que eu tinha em Chicago.

Meus binóculos são realmente ótimos. Ampliam a visão em dez vezes. Aponto-os para uma das janelas da vizinha. O que vejo é uma típica cena de festa de adolescentes, daquelas que vemos nos filmes tipo American Pie. Garotos e garotas be­bendo sabe-se-lá-o-quê em copos plásticos coloridos, dan­çando, conversando, se beijando. Típico.

Vamos ver outra janela. Praticamente a mesma cena que vi na janela anterior. Poderia desistir de ficar olhando e voltar para cama, ler alguma coisa, tentar escrever, mil coisas. Mas a tentação de observar a janela de que tenho certeza de que é o quarto dela é mais forte. Quem sabe posso ver alguma coisa que me inspire a escrever, tento racionalizar comigo mesmo.

Levanto o binoculo para o segundo andar. Fico animado com o que vejo. Não, não sou voyeur, penso. Mas vou continuar a olhar. A vizinha tira a blusa do rapaz e o empurra, provavel­mente para a cama, não dá para ver. Ela veste apenas linge­rie de renda preta que contrasta com a sua pele bem branca. Suas tatuagens são visíveis. O que acontecerá a seguir é previsí­vel. Ela se lançará sobre ele e terão as tórridas rela­ções típicas de sua idade. Para mim, isso era o óbvio, e seria ótimo, pois, sendo impossível ver alguma coisa, desistiria dessa brincadeira um tanto bizarra e perigosa de observador.

Mas, súbito, ela vira o rosto para a janela e olha direto para mim. Não, ela não está me vendo, penso. Estou oculto pela escuridão do meu quarto. Porém de alguma forma ela me viu. Sim, me viu e vira-se de frente para mim, me encarando mesmo àquela distância, como se olhasse nos meus olhos de uma forma intimidadora. Poucas vezes na minha vida fiquei tão sem saber o que fazer como agora.

Então ela avança à sua janela. O que ela fará? Vai gritar para mim? Me xingar? A mim, o vizinho indiscreto, o perver­tido? Do que ela irá me chamar? E como devo reagir? Com alguma desculpa esfarrapada? Retrucando com o incomodo que a festinha dela está me causando?

De todo esse mundo de possibilidades que minha mente gera instantaneamente, nenhuma delas se concretiza. Ela simples­mente fecha as cortinas, ainda que continuando a olhar para a minha janela.

Coloco o binóculo no criado mudo e sento na cama. No resto da noite minha cabeça é ocupada pela lembrança do que aconte­cera naquele momento e o que deveria fazer no dia seguinte. Fingir que nada aconteceu? Porque talvez nada tenha acontecido mesmo. Ou tentar pedir desculpas a ela pelo que fiz, dizer que foi uma terrível coincidência? Quem sabe, até me aproximar dela?

Calma, não tenho interesses amorosos muito menos sexuais nessa garota. Minha filha é mais velha que ela. E sei qual é o meu lugar. Mas a minha profissão é escrever histórias, e pes­soas são a minha matéria-prima. Com toda a modéstia, sou um Michelangelo das palavras que pega as vidas dos outros e tenta transformá-las em obras de arte. E essa menina parece ser uma bela matéria-prima, sem duplo sentido.

As lembranças do dia em que a vi pela primeira vez me estimu­lam a escrever. Sento à escrivaninha e abro o note­book. Começo a criar um relato do que aconteceu comigo de forma romanceada.

Havia acabado de me mudar para cá. Estava em minha va­randa tomando café e lendo jornal quando irrompeu uma gritaria na casa dela. Repentinamente, a porta da frente se abriu e saiu um rapaz desconjuntado, terminando de vestir as calças. Logo começaram a voar na direção dele, que ten­tava se esquivar, a camiseta, primeiro, e depois o celular. Um dos tênis acertou a cabeça dele. Ela apareceu na porta gritando, acho que xingando-o em outro idioma, pois não conse­guia discernir as palavras.

Ela virou-se para a sua esquerda e olhou para mim, que es­tava um pouco assustado, com a cara fechada. Entrou e ba­teu a porta. O rapaz, que parecia tentar se explicar, também num idioma desconhecido para mim, foi bater à porta insisten­temente até desistir após alguns minutos e sair resmun­gando. Antes de entrar em sua picape, ele também olhou para mim, zangado. Depois seu carro partiu em dispa­rada.

A briga foi séria. Ele deve ter feito algo muito grave. E agora os dois estão lá no quarto dela. Se agarrando.

Acordo com a cabeça sobre o braço direito e este sobre a escriva­ninha. O notebook está em modo de espera. Não lem­bro como apaguei aqui. E nem sei a que horas a festa acabou.

Me levanto e vou observar, pela janela, a casa ao lado. Nem parece que é o mesmo local onde acontecera aquele pandemô­nio na noite anterior.

Tomo um banho para terminar de acordar. Desço as escadas e tomo meu café da manhã. Ainda penso nos acontecimentos da noite anterior e não sei o que vou dizer à vizinha. Se é que vou dizer alguma coisa. Sinto-me ridículo só de imaginar o que ela deve estar pensando sobre mim.

Abro a porta da frente e pego o jornal no chão da varanda. Ainda com a caneca de café na mão, sento-me para lê-lo e observar a movimentação da vizinhança.

Aceno para o vizinho que mora do lado esquerdo da minha casa, que está aparando a grama do jardim:

-Bom dia senhor Thompson!- ele é um homem de meia-idade, um pouco mais velho que eu. Cabelos grisalhos, bochechas coradas, cultiva hábitos prosaicos junto com a sua adorável esposa. Enfim, um típico habitante do interior americano. E um ótimo vizinho.

Num instante fico congelado. Ao virar para a minha direita, lá está a vizinha, se espreguiçando de pé em sua varanda. Veste short jeans e camiseta regata preta. É uma jovem com uma beleza muito singular. Seus cabelos são castanho-claros, com pontas louras. Os grandes olhos azuis chamam tanto a atenção quanto seus carnudos lábios vermelhos.

Ela desce a escadinha da varanda. Impulsivamente me le­vanto e decido ir falar com ela. A sorte está lançada.

Aproximo-me dela e gaguejo:

-Bom dia. Eu... Eu... Sou... Seu novo vizinho. É... Daqui do lado. – aqueles grandes olhos prestando atenção em mim me deixam mais nervoso.

-Heidi! Je moeder aan de telefoon!-uma voz masculina grita de dentro da casa.

-Desculpe. Me dá licença um minuto?- ela me diz e corre para dentro, me deixando parado ali na escadinha sem saber se espero ou fujo para minha casa.

Escolho a segunda opção.

Emboratenha sido rápido e eu ter ficado sem jeito, gostei desse primeiro contato comela. Foi juvenil. Mas eu gostei. O que está acontecendo comigo?

A EstrangeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora