Estamos largados no sofá, rindo de qualquer coisa, principalmente de coisas que ela diz no idioma dela e eu não entendo nada. Nossa voz já está pastosa.
-Se importa que eu fume um pouquinho?- ela me pergunta rindo
-Fique à vontade. A casa é sua- respondo gargalhando por nada.
Ela acende um cigarro. Está com a perna esquerda cruzada atrás da direita, o peito do pé encostando-se à panturrilha. O braço esquerdo ela apoia no sofá e com essa mão segura o cigarro. Com a mão direita segura a taça. A imagem dela assim é perturbadora para mim, me deixando inquieto. É como se eu visse Lorraine e Cat misturadas na mesma pessoa.
-Por que o senhor está me olhando assim?
-Você está muito sensual- não sei como tive coragem para dizer essa frase. Deve ter sido a bebida falando por mim.
-Gostou? Tire uma foto...
Eu entendi a ironia, mas mesmo assim repondo: - Não. Quero guardar essa imagem somente na minha memória.
-Senhor Whitman... Quando o senhor me viu no meu quarto, o que estava pensando?
-Eu não sei exatamente. Estava buscando uma inspiração, e daí vi você e foi tudo tão rápido. Você me viu e eu não soube o que fazer.
-E eu fui útil?
-Você é a melhor inspiração que um artista pode ter, mas tem algo de errado comigo.
-Me senti violada quando eu vi o senhor me espiando. Mas ao mesmo tempo
... Eu gostei.
-Eu deveria ter me desculpado. Lamento por aquilo. Foi errado. Mas você me deu o troco.
-Acho que sim. –ela ri- Foi perverso fazer aquilo com o senhor na frente de todos.
Eu rio: - Eu mereci.
-Vou pegar mais uma bebida para a gente. –Ela se levanta.
-Eu estou bem
Ela vai até a cozinha, faz mais uma mistura e volta com um copo de uma bebida rosa.
-O que é exatamente isso aí?
-Esse é o melhor. Sempre deixo por último. Coquetel de frutas vermelhas. É uma delícia senhor Whitman. Tem certeza que não quer?
-Não. Já estou bem alcoolizado. Obrigado.
Ela senta-se no sofá virada para mim e segurando o copo. Olhando para ela dou uma risadinha.
-O que foi senhor Whitman? O que tem de engraçado agora?
-Estava lembrando o primeiro dia em que te vi. Você estava brava, expulsando seu namorado da sua casa. O que foi aquilo...
-Eu estava com muita raiva. Pensei que ele estava me traindo.
-E ele estava?
-Não. Tudo se esclareceu.
-Que bom.
-É, porque ele é a única pessoa próxima que eu tenho aqui. Alguém em quem posso confiar. Eu acho.
-Agora você também tem a mim para confiar. Se você quiser. -Nesse momento me dou conta de que nunca disse essas palavras à minha filha.
-Obrigada. –ela abaixa a cabeça. Bebe um gole da bebida e permanece com a cabeça baixa, segurando a taça com uma mão e roçando nela os dedos da outra mão.
–Ei, o que foi?- percebo que ela está chorando. – Falei alguma coisa que não deveria?
-Não. Eu fiquei feliz em ouvir isso senhor Whitman. Mas eu queria... Nem que fosse uma vez... ouvir isso do meu pai. - ela levanta o rosto com lágrimas nos olhos.
Me aproximo dela. Enxugo suas lágrimas com os dedos. Nesse instante por trás da jovem sombria que eu conheço surge uma menina carente de atenção. E eu a abraço.
-Sinto muito. Queria poder fazer algo para mudar isso.
Queria dizer a esse cara que ele tem uma filha maravilhosa. E valorizar a família que tem. E não cometer o mesmo erro que eu... Espere aí. Ele sou eu. E não está fez nada de diferente do que eu estou fazendo até agora. Mas eu ainda tenho tempo de consertar.
-Eu sei. –ela fala ainda encostada ao meu peito. -Eu já sou adulta, sou independente, e toda aquela história, mas essas coisas me fazem falta. Pensei que fosse lidar bem com isso quando crescesse, mas não tem sido fácil.
-Em qualquer idade precisamos de carinho. –Acaricio os cabelos dela de modo paternal. Reflito em minhas próprias palavras. Então é assim que Cat se sentiu toda a sua vida.
Acordo com a cabeça dela numa almofada sobre o meu colo. Não sei quanto tempo fiquei apagado. Olho no relógio de pulso. Cuidadosamente levanto a almofada que apoia a sua cabeça. Me levanto devagar deixando-a dormindo sobre o sofá.
Devagar me dirijo à porta da sala. Abro, saio, tranco e jogo as chaves por baixo da porta.
Quando chego em casa, atiro as chaves da porta sobre a mesinha de centro. Não me sinto bem. Nada bem. Talvez um banho melhore esse mal-estar.
Há um aperto no meio peito. A imagem de Heidi chorando e as palavras dela não saem da minha cabeça.
Entro no banheiro. Arranco minha roupa e a atiro no cesto. Debaixo do chuveiro, abaixo a cabeça e choro amargamente.
"Sou um merda! Deixei tudo escapar pelas mãos! Tudo!" Penso, enquanto dou um soco na parede com o punho da mão direita cerrado.

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A Estrangeira
RomanceUma misteriosa jovem transforma a vida de um escritor mais velho que acabou de perder a esposa.