Capítulo XX

122 17 72
                                    

– Guto... Guto? Ei, meu amor, fala comigo. – Nathalia estava desesperada. Guto estava com a respiração fraca, delirando, seus olhos estavam revirados e suas mãos geladas, a cena era assustadora.

Padre Silvio olhava tudo calmamente e, olhando para dentro da fazendo, sugeriu que entrassem. Por alguma razão, saia fumaça da chaminé daquela velha casa. Embora a fazenda tivesse sido interditada, poderia ter alguém morando ali.

– Vamos leva-lo para dentro da casa. – Sugeriu o padre, causando um certo receio em Nathalia.

– Quer entrar ali? – Questionou a moça. – Não podemos fazer isso, Guto ia acabar piorando. 

– Olha em volta, menina. Estamos no meio do nada, está escurecendo e uma viagem até a cidade, na condição em que ele se encontra, poderia ser fatal. Será bem mais fácil cuidar dele por aqui mesmo.

– A fazenda está abandonada há anos e...

Antes que Nathalia concluísse sua frase, o padre apontou o dedo para a chaminé na casa. Nathalia compreendeu o que o sacerdote quis dizer.

– Rezemos para que encontremos gente do bem ali. – Concluiu o padre, abaixando-se para, junto de Nathalia, carregar Guto para dentro da casa.

Passados uns poucos minutos, os três viajantes estavam na varanda da casa. Guto continuava desacordado, mas seu corpo tremia e isso preocupava cada vez mais Nathalia.

– Tem alguém aqui? – Gritava o padre, dando algumas batidas na porta.  Não obteve nenhuma resposta e, ao verificar a porta, viu que a mesma estava aberta. Nathalia estava receosa, aquele local lhe causava arrepios. Contudo, a moça e o padre entraram, carregando Guto e, em seguida, o colocaram deitado no sofá. Nathalia observava o local. Tinha certeza que um dia aquela casa tinha sido bela, mas agora o chão estava sujo, as paredes manchadas, teias de aranha no teto e o cheiro desagradável tornavam aquilo um ambiente assustador.

– O que faremos agora, padre? – reocupou-se Nathalia, Guto ainda estava mal e eles tinham que fazer alguma coisa. Contudo, outra coisa também preocupava a moça. – O senhor não está preocupado com as pessoas que estão vivendo aqui? Não é certo invadirmos assim...

– E o que é certo? Deixar Guto morrer? Nos atentemos ao que realmente importa, está bem?

Nathalia apenas assentiu, ainda com receio.

– Eu vou procurar a cozinha e verificar se há alguma coisa que sirva de remédio. Fique aqui com Guto, não demoro. – Disse o padre.

O padre saiu daquele cômodo e, logo em seguida, Nathalia ouviu Guto chamar seu nome, bem baixinho, ele estava muito fraco.

– Oi, meu amor, eu estou aqui, você nos deu um susto imenso, Guto, eu pensei que...

– Nath... – Guto interrompeu a namorada, estava com a voz ofegante, fazia muito esforço para falar. – Nath... nós precisamos ir embora daqui... Nath... Por favor... Vamos embora daqui...

– Guto, ei... – Foi a vez de Nathalia interromper. Guto estava visivelmente amedrontado. – Você não está em condições de viajar, ao menos não no estado em que está. Você precisava ver como ficou, foi assustador, vamos cuidar de você aqui e eu te prometo que assim que você estiver ao menos um pouco melhor, daremos o fora daqui e nunca mais voltaremos, meu amor.

– Não, Nath... Me desculpa, me desculpa... – Guto estava aos prantos, sentia um enorme aperto no peito. – Nath... Me desculpa... a Granola. O mecânico... Felipe... Me desculpa, Nath.

– Do que você está falando, Guto? O que tá querendo dizer?

Antes que Guto respondesse, Padre Silvio apareceu na sala, trazendo em mãos uma xicara. Ele tinha preparado um chá, com algumas ervas que encontrou na cozinha.

– Toma, beba, vai te fazer bem. – Disse o padre, entregando o chá a Guto. – Você nos deu um belo de um susto, rapaz. – Concluiu o padre.

– Eu estou me sentindo bem melhor agora. – Disse Guto, após tomar um pouco do chá. – Já podemos ir, não podemos. – Guto tentou se levantar, mas sentiu as pernas fraquejarem e caiu sentado no sofá.

– Não, você ainda não está bem. – Disse Nathalia, segurando o braço do namorado.

– Você precisa manter a calma, uma viajem no estado em que você está agora, só pioraria a tua situação. – Completou o padre.

– Vocês não entendem... – Guto sussurrou, com os olhos cheios de lágrimas. – Eu não posso ficar aqui... Esse lugar... Só me traz lembranças horríveis... Eu nunca deveria ter voltado...

– Guto, chega... – Nathalia alterou-se um pouco. – Eu sei que é horrível voltar até o local em que você viveu a pior tragédia de sua vida, mas eu estou aqui com você... Você já não está sozinho, meu amor... Eu estou com você... Eu te amo e...

– Eu matei a granola, Nath...

Nathalia espantou-se, não acreditou no que ouviu.

– O que você está falando, Guto?

– A granola... – Guto estava outra vez em prantos, mal conseguia falar – Eu matei nossa Granola... Matei o mecânico, Nath... e o Felipe... Matei todos eles.

– Você está me assustando, Guto... Me diga que está mentindo, por favor. – Agora Nathalia também estava chorando.

– Guto, o que você está falando? – Questionou o padre.

– Eu matei, padre... Eu menti para o senhor... – Guto, enfim, criou coragem para falar sobre suas ações. – No orfanato... Felipe me perseguia, não foi com a minha cara desde que cheguei lá. No início, eu não queria machucá-lo ... Mas, depois... depois eu passei a gostar... Eu fiz com que ele caísse em uma armadilha de vidros... Ele ficou sem andar... Cada vez mais eu sentia prazer na dor dele... Aí... Naquele dia... era a minha vez de preparar o café da tarde...  Eu queria envenenar apenas ele... Mas a madre também tomou o café... Eu fugi... estava perdido, perturbado... aí o senhor me encontrou...

Nathalia estava trêmula, em prantos. Não queria acreditar no que estava ouvindo.

– Por que nunca me contou isso, Guto? – Indagou a moça. – Por qual merda de razão você nunca me contou isso? – Nathalia agora estava alterada.

– Eu tive tanto medo... medo de que você não me aceitasse... Medo de ficar sozinho outra vez... medo... eu fui um covarde e...

– A granola, Guto... O que você fez com minha granola? – Cada vez mais as lágrimas escorriam pelos olhos de Nathalia. A moça estava com os batimentos acelerados, ofegante.

– Eu matei, Nath... Matei a granola... com uma corda... eu enforquei ela.

– Não... – sussurrou Nathalia. – Por favor, não... me fala que você está mentido, Guto, por favor. – Ela não queria acreditar no que tinha acabado de ouvir. Vendo que Guto não lhe deu nenhuma resposta, Nathalia confirmou que ele estava falando a verdade. Seu estômago embrulhou. Saiu correndo em direção à varanda e, ao chegar lá, vomitou. Continuou chorando, cabisbaixa. Em sua mente, vieram lembranças de todos os momentos bons que passou ao lado de Guto. Imagens de granola também preencheram sua mente e tudo o que ela podia fazer era chorar. Sentou-se no chão da varanda e colocou o rosto entre os braços. Permaneceu assim por uns segundos, até ouvir um barulho estranho. Olhou  para a direção do barulho e, por um instante, jurou que tinha visto uma mulher se escondendo na mata. Nathalia levantou-se, a fim de verificar o que era aquilo. Percebeu o mato se mexendo.

– Quem está ai? – Descendo para o quintal, a moça foi em direção à mata. – Oi? Tem alguém aí?

Nathalia não obteve nenhuma resposta e, mais uma vez, percebeu o mato se mexendo. Ao aproximar-se mais um pouco, avistou um caminho, com algumas pegadas. Seguiu.

Na casa, Guto estava cabisbaixo. Não conseguia encarar o padre, tampouco tinha forças para ir atrás de Nathalia. O silêncio torturante foi quebrado pelo sacerdote.

– Por que nunca me falou essas coisas, Guto?

– Padre, eu só te peço uma coisa... Vai atrás da Nath... e me perdoa... por favor, me perdoa.

O padre ficou encarando Guto por um tempo, mas logo em seguida deixou aquele cômodo. Ao sair pela varanda, percebeu o vômito, mas nem sinal da moça.

– Nathalia? – O padre gritou, mas não obteve respostas.


Descendência Malter (Em processo de revisão )Onde histórias criam vida. Descubra agora