Capítulo 2

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Desde pequena, tenho o hábito de me ausentar dos problemas, sendo eu a causadora deles ou não. A morte do gato da vizinha com um estilingue, a quebra do jarro que guardava minha bisavó materna na mesa de centro da sala...
Mas as brigas dos meus pais eram o motivo mais frequente das minhas escapatórias. Gostava de passear à beira rio. Rio Amazonas. Ele passa pelo meu bairro e por muitos outros, inclusive pelo do meu amigo de escola, Anjinho.
Era certo eu vê-lo em todos meus passeios. Seus cabelos eram ondulados na altura da orelha num tom de loiro e os olhos, esverdeados. Sua pele parecia algodão pela cor e textura. Ele dava jus ao apelido literalmente porque além da aparência, também tinha a função de um verdadeiro anjo, já que ele me ajudava a esquecer o problema que fosse, enquanto caminhávamos lado a lado.
Por duas quadras ou três, ele me acompanhava, trocávamos poucas palavras, pois não era assim que conversávamos. Havia uma conexão irreal entre nós na qual palavras eram dispensáveis.
Lembro-me bem que um dia antes do meu aniversário de dez anos, Anjinho me presenteou com uma hibisco, uma flor simples que ele colheu no jardim da sua mãe um pouco antes de me encontrar, certeza, nunca vi uma flor tão viva. Foi o presente mais sincero e de mais valor que recebi em qualquer aniversário.
Eu sabia que Anjinho era muito especial e não achava que era apenas coisa de criança, mas foi.
Dois anos depois de ter me dado a flor, sua tia Karen o convidou para estudar e morar com ela e seu marido nos Estados Unidos. Raquel López, sua mãe, concordou em levarem meu Anjinho para longe de mim. Não conseguimos sequer nos despedir. Nunca mais o vi e sofri sua falta desde então...

Era relaxante ver o encontro das águas dos rios negro e solimões balançando devido à força do vento sem se misturarem, era como bailarinas fazendo o que sabem de melhor sem escorregarem com a sapatilha de ponta. Eu observava as leves ondas, os peixes que saltavam e toda a beleza do rio e que a natureza em volta me oferecia. Desde já me apaixonei por ela.
Daí meu interesse em caça e pesca, em plantas de todos tipos. Meu pai sempre fez questão de me orientar sobre, me ensinou tudo o que sei sobre fauna e flora. Instruiu-me a cuidar de mim mesma. Talvez por um dia saber que eu iria precisar, talvez por não ter um filho homem para quem ensinar ou talvez só por gostar de se sentir superior com todo o seu saber. Ele gostava de se sentir assim.

Minha infância foi rica. Não financeiramente, éramos de origem pobre. Mas de experiências. Aprendi muita coisa nesses dezoito anos de vida que tenho. Muito vivi, até mais do que gostaria. Por diversas vezes vi meus pais brigando. Não era legal, mas nunca era o fim do mundo. Nessas horas eu ficava longe, esperava acabar e fingia que nada tinha acontecido. Já cheguei a perguntar, mas lembro de minha mãe dizer com olhos pesados e olheiras enraizadas:
- Tudo bem. Não é nada... Já passou.
Ela me tranquilizava com um sorriso triste, mas que realmente acreditava no que dizia. Não sabia dona Eva que aquilo era só o começo do fim.

                                    ***

A lua bate à porta. E sua luz é a única que eu tenho na primeira noite da minha estadia nesta ilha. Foi suficiente para que eu enxergue algumas folhas de bananeira no canto que eu tinha retirado mais cedo para me servir como esteira de dormir. Meu travesseiro será a manta da minha mãe, um pedaço dela embolado e o resto me aquecerá do frio de passar a noite à beira mar. Meu teto será o céu em breu.

Durante a noite, quase não preguei os olhos, com excessão de poucos minutos quando meu corpo não aguentou de exaustão, mas na maior parte do tempo, meus pensamentos não me deixaram em paz. Eles disputavam entre apenas aceitar estar ali, até porque tentar sair seria uma grande aventura, e o que aconteceria se eu continuasse lá. Eu teria coragem de continuar na minha casa? Alugaria um outro lugar? A mãe de meu pai morreu de câncer no pulmão enquanto seu pai sofreu um acidente fatal de ônibus quando ele ainda era criança, sem parentes próximos, foi criado num orfanato, mas nunca adotado, aprendeu então a cuidar de si. E os da minha mãe, ela nem os conheceu. Foi criada com a irmã, Carla, pela vó - que eu tampouco cheguei a conhecer - Carla foi morar no exterior e nunca mais deu notícias, minha mãe me contou. Então sem parentes, onde eu estaria se estivesse lá? Talvez mais à deriva que aqui. Difícil saber.

Meus pais se casaram muito jovens, principalmente dona Eva Cortez, com seu sorriso tímido e cativante foi fácil conquistar meu pai, mesmo que sem querer. Ele, por sua vez, não era de se jogar fora, no entanto, de poucos sorrisos.
Carlos Eduardo de Alvarenga, um nome forte para um dono mais ainda. Sua pele era queimada de sol, mas por natureza, clara como a lua. Dos olhos caramelados e cabelos cacheados, algumas de suas qualidades incluíam ser independente, a pesca isso lhe proporcionava, e ser aparentemente indestrutível como um super herói, aos olhos de minha mãe. Ela achava que ele a protegeria de todo mal, de toda perversidade dos inconsequentes desse mundo. Dona Eva estava mais uma vez equivocada.

Ilhada - A ilha que habita em mim (LIVRO COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora