Depois da morfina, já inebriante, Cecília confere com o olhar que os rapazes já não estão tão perto para que pudessem ouvir nossa conversa. Eu ainda passeio minha mão por dentre seus cachos perfeitos e com mechas quase brancas, quando ela começa, mostrando dificuldade para falar:
- Não acredito que ele te escolheu... Fiz de tudo para continuar nosso namoro, mas ele terminou assim que soube que você tinha dormid... Fugido! Decidiu vir para essa ilha miserável que eu insisti para vir junto só para ficar perto dele e agora nem vou voltar inteira e sabe de quem é a culpa, Larinha fofinha?
Como é? Cecília e Jorge namoraram?
Porque ele não me contou?
Ah!
Deve ter sido ela, de quem ele falou: "Só tive uma namorada, durou uns seis meses, mas não foi importante" eu lembro. Não foi sério para ele!
Caramba! E ela ainda me culpa pelo ataque?
Assustada com a sua abrupta confissão, eu presto atenção em cada palavra mesmo saindo turvas, lentas e sarcásticas. Cecília desfere, aumentando o tom de voz:- Sua! Sua desgaragraçada! Antes de você fugir, estava tudo bem! Eu já tinha conseguido um lugar no coração de Jorge. E você o roubou de mim! O espaço e Jorge!
Cecília ri do próprio trocadilho. Aproveito a brecha e rebato, tonta:
- Mas ele estava no exterior, quando vocês namoraram? Eu nem sabia que se conheciam!
- Nós sempre nos conhecemos! Nós três! Eu era a garota que sentava sozinha na última cadeira. A burra que sempre pedia a professora para explicar de novo. Todos tiravam sarro de mim, até um dia no recreio meu Jorge me defender, desde então, comecei a gostar dele, mas aí você trocou de turma e veio para nossa com tooodo - ela vira os olhos - seu charme e o que eram os recreios na arquibancada da quadra só nossos, - põe as mãos em seu peito, enfatizando a situação já dramática - virou o de vocês! - aponta para mim seu dedo indicador magro e pequeno. Ele me excluiu e o pior é que acho que nem percebeu. Como eu te odiava! Como te odeeeeio!
Sua voz diminui de novo, mas logo aumenta. E ela ainda tropeçando nas palavras prossegue:
- Depois de muitos anos, nos reencontramos em uma visita que ele fez aos pais e trocamos os números de celular. Vi minha segunda chance no olhar dele quando passamos a tarde inteiririnha papeando e rindo até ele ter que voltar para dentro. Não muito depois, começamos a namorar. Ele foi meu primeiro homem, meu único... - uma lágrima cai solitária em seu rosto triste - Foram os seis meses mais felizes da minha vida.
''Primeiro homem''? ''Seis meses''?
Com certeza foi dela que Jorge falou! E mesmo ele tendo tirado a virgindade dela, conseguiu me dizer que o namoro não foi importante?
Que babaca!
Cecília solta um longo suspiro para repor o ar depois de falar incessantemente e continua:- Mas aí, bem depois, ele me contou do encontro com seu pai e me remoí, mas quieta. Ainda me ofereci para vir junto. Tudo para ficar perto dele. Ah!
Ela começou volta a chorar. Um choro sofrido. Mas não sei qual é seu motivo de mais pesar. Faz-se uma pausa. Ela olha para mim enquanto meus olhos marejam, já entendi tudo, mas pergunto só para confirmar:
- Você estava no dia que bati nele sem querer, não é? Pegou o girassol do chão que não aceitei e o guardou. Foi isso?
Sem ordem para descer, suas lágrimas apenas rolam uma em meio a outra enquanto ela afirma com a cabeça e lábios cerrados. Quando reúno forças para acrescentar um pedido de desculpa, já é tarde. Cecília perde o resto das forças e desmaia por causa da morfina. E eu que estou perturbada por não conseguir pedir ao menos perdão, deito meus braços sobre ela e a cabeça na maca improvisada esperando que aquele gesto representasse o meu profundo arrependimento. Choro mais por dentro que por fora. Não quero demonstrar meus sentimentos a ninguém. Sinto-me vulnerável e também tão culpada. Sinto raiva de mim por ter enxergado apenas o meu lado. Ter dado atenção apenas para os meus problemas sem nem me preocupar com ela. Sem ao menos perguntar como ela estava. Desde criança eu já era dispersa. Mas fui muito egoísta. Como não percebi? Como pude tomar o lugar de uma pessoa? Roubar um amigo? Tudo isso é uma surpresa para mim. Atordoada em meio as minhas frustrações, Jorge dá um toque no meu braço, que só percebo depois dele chamar meu nome, baixinho.
- Ei, ela vai ficar bem...
Olho para ele e posso contemplar seu leve sorriso que aquece meu coração sem diminuir minha culpa. E a dele. Sussurro em resposta com sinceridade e sem me levantar daqui:
- Espero que sim.
***
Quando o resgate chegou, duas longas horas depois, Cecília foi levada às pressas para dentro do helicóptero. Estava ainda desacordada, o que me deixou mais preocupada. Tivemos que nos afastar para que o helicóptero pudesse partir sem nos inundar de areia. Então Jorge e eu começamos a caminhar para o meu abrigo de mãos dadas, quando olho para trás e vejo Esteban e Ramon tão perturbados com tudo aquilo quanto nós. Esteban com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça caminhando em círculos e Ramom novamente roendo as unhas, não resisto e então os convido para jantar. Eles aceitam de bom grado, levando alguns legumes enlatados com eles, como agradecimento, acho.
Neste momento não há ressentimentos, não há diferenças entre nós. Só há um laço que envolve nós quatro nesta ilha não tão mais deserta assim.***
Chegando ao meu querido abrigo, começo a assar a capivara que capturei mais cedo, mas não antes de temperar, já que é o melhor presente que meu pai tinha enfiado na mala: os temperos. Fico feliz por isso, o que me fez sentir péssima já que Cecília vai enfrentar a ala de cirurgias enquanto eu comia satisfeita. O que aconteceu não é justo com ela.
- Afinal, o que aconteceu exatamente?
Dou voz aos meus pensamentos. E Esteban responde:- Antes de eu entregar a morfina para ela, perguntei a mesma coisa. Ela me disse que era uma onça pintada. Que viu o seu filhote e estava encantada observando ele trocar as patas.
Ele sorri ao imaginar a cena e continua:
- Mas que a mãe chegou logo depois por trás e a atacou. Cecília é ágil, então correu. Foi aí que a mamãe onça mordeu a perna esquerda dela e estilhaçou seus ossos.
Ele fecha os olhos tentando não imaginar a cena e prossegue:
- Não acho que vá conseguir recuperá-la. Não entendo muito de ferimentos, mas partes da perna dela tinham ficado para trás.
Sinto meu estômago embrulhar. Mas é a verdade e ela sabia. Já tinha dito que não sairia daqui inteira. Provavelmente terá que amputar. Não consego mais comer. Estou enjoada, então depois que os meninos terminam, peço licença e vou deitar depois de tirar a minha roupa nova manchada de sangue alheio e trocar por um confortável moletom, calça e blusa de manga comprida.
Só Jorge fica e pergunta olhando para o lado vazio no colchão que eu ganhei:- Posso?
Respondo que sim com a cabeça. Mesmo tendo perguntas para fazer a ele, não é a hora. Converso com ele amanhã. Estamos exaustos pisicologicamente. Muita coisa aconteceu hoje e ele, de novo, parece entender minhas frustações, meu estresse. Ele não diz nada, só põe o braço direito debaixo da minha cabeça e eu me acolho em seu abraço, repousando no seu peito quente e receptivo. Olho para a manta da minha mãe e penso em me cobrir como sempre fiz. Mas nessa noite, em especial, sei que não preciso. Já me sinto protegida o suficiente.
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Ilhada - A ilha que habita em mim (LIVRO COMPLETO)
Dragoste🔴 A ideia de parar numa ilha deserta em busca de um recomeço não parece tão ruim se comparada à ficar na casa onde viu sua mãe ser assassinada. Lara assim começa uma jornada que imaginava ser desafiadora, mas que depois mostrou ser ainda mais que i...