XII A inveja de Kariado

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TRISTÃO amava Isolda com um amor imutável; ela, igualmente. Levavam a vida do mesmo modo, cortês e agradável, e o seu amor era de tal força que pareciam só ter um coração e uma alma. Vários na corte o notaram e o caso foi falado; mas ninguém sabia as coisas com toda a certeza, e o que se contava eram unicamente boatos.
Tristão tinha por companheiro e par um vassalo de nobre família chamado Kariado, que era da sua idade e com o qual partilhava várias vezes o quarto no interior do castelo de Tintagel. Era um fiel do rei Marcos, sempre atento a agradar-lhe, mas invejava os favores com que ele cumulava o sobrinho. Ora, uma noite em que repousavam juntos na mesma cama, mal Kariado adormeceu, Tristão esgueirou-se de perto dele e saiu. Caíra neve e a Lua brilhava com tanta claridade que dir-se-ia ser dia. Tristão chegou à vedação do pomar que se encontrava sob o quarto das mulheres: afastou uma prancha da paliçada por onde costumava penetrar. Brangia pegou-lhe na mão e conduziu-o à rainha Isolda. De um cesto para recolher as cinzas fez um resguardo para disfarçar a claridade da vela e dissimular os ardores dos amantes. Depois, foi-se deitar, esquecendo-se de fechar a porta do quarto.
Entretanto Kariado teve um sonho: viu um enorme javali arremessar-se da floresta, de boca aberta; aguçava as defesas e agitava-se tão violentamente que parecia querer devastar tudo. O animal avançou para o castelo. Nenhum dos barões de Marcos ousou enfrentá-lo. O javali correu a grunhir pelo palácio até ao quarto do rei. Atravessou as portas, precipitou-se no aposento, rasgou e sujou com a espuma do focinho o leito de Marcos e os seus ornamentos. Vários homens acorreram então em socorro, mas o próprio rei não ousava fazer nada. Kariado acordou, angustiado com o que vira, e acreditou em princípio ser verdade. Mas logo reconhecendo que não passava de um sonho, ficou curioso de saber o que poderia significar. Chamou Tristão, seu companheiro, para dele lhe dar parte. Tateia a cama e não o encontra. Levanta-se, vai à porta e apercebe-se de que está aberta. Supõe que Tristão saiu nessa noite para divertir-se algures; mas por que se terá afastado tão misteriosamente, sem que pudessem notar a sua partida, sem que tivesse confiado a alguém aonde queria ir?
Kariado avista as suas pegadas na neve e segue facilmente essa pista, pois havia luar. Tendo chegado ao pomar, vê a abertura na paliçada por onde Tristão se introduzira. Chega à porta do quarto das mulheres e encontra-a aberta. Vem-lhe ao espírito que Tristão aí entrou por amor de alguma criada; mas no próprio momento em que tem este pensamento, um outro se apodera dele: Tristão entrou aí por amor da rainha. Por fim, Kariado entra no quarto silenciosamente e não encontra claridade alguma: a vela acesa só dá um fraco clarão, pois está coberta com o cesto. Kariado avança mais, tateando as paredes com as mãos, e tanto faz que chega perto do leito da rainha, entrevê os dois amantes estendidos lado a lado e, de súbito, descobre todo o mistério. Deixa o quarto e afasta-se, depois volta a deitar-se, preocupado. Em breve Tristão regressa por sua vez e sobe cuidadosamente para a cama. Conservou-se silencioso e o outro calou-se, nenhum disse uma palavra, o que raras vezes lhes acontecera; não estavam acostumados a tal desconfiança. Tristão apercebeu-se logo desse afastamento e compreendeu que, intimamente, Kariado desconfiava de qualquer coisa. Daí em diante vigiou melhor as suas ações e os seus ditos, mas tarde demais — o seu segredo fora descoberto.
No dia seguinte, Kariado chamou o rei de parte e disse-lhe: "Sire, contam-se na corte, a respeito de Tristão e de Isolda, muitas coisas que não honrariam de modo algum o vosso país e os vossos homens. Advirto-vos para terdes cuidado e refletirdes: estão em jogo o vosso sossego e a vossa honra." Marcos, o mais fiel dos homens e o melhor, Marcos, o simples, espantou-se: recusava-se a obscurecer, fosse com a mais ligeira dúvida, a estrela da sua alegria, Isolda. Todavia, trouxe estas coisas no coração com sofrimento e dor e pôs-se daí em diante à espreita para ver se conseguia descobrir algum indício. Espiava sem cessar os atos e as pala¬vras da rainha, mas sem nada surpreender, pois Tristão havia posto Isolda de sobreaviso e advertira-a das suas suspeitas e da inveja de Kariado.
Finalmente, o rei resolveu experimentar a rainha. Uma noite em que repousava ao pé dela, disse-lhe com fingida tristeza: "Senhora, quero fazer uma peregrinação, viajar fora da minha terra e, para minha salvação, visitar os santos lugares. Mas não sei a quem entregar a guarda do meu reino. Que me aconselhais? Dizei-me sob qual salvaguarda quereis ficar e seguirei o vosso conselho." Isolda respondeu: "Como podeis duvidar do melhor partido? Quem me deve proteger senão o meu senhor Tristão? Parece-me que o mais conveniente é eu ficar entregue à sua proteção. Pode defender a vossa terra e tomar conta da vossa corte. É filho de vossa irmã; saberá esforçar-se por manter em toda a parte a vossa honra, e, pelo seu fiel serviço, com satisfação de todos, guardará bem o vosso reino." O rei ficou perturbado com estas palavras: de manhã, foi ter com Kariado e contou-lhe a conversa com a rainha. Kariado respondeu-lhe: "Podeis reconhecê-lo agora pelas palavras da rainha: ama Tristão com tal amor que já não consegue dissimular. É estranho que queirais suportar durante tanto tempo tal vergonha e que não expulseis Tristão para longe de vós." Mas o rei continuava hesitante e incerto, e não se decidia ainda a aceitar como verdade o que Kariado lhe dizia do sobrinho.
Entretanto, Isolda levantou-se, chamou Brangia e disse-lhe: "Bela amiga, soube de uma boa e muito doce nova: o rei quer fazer uma viagem fora do país. No intervalo, devo ficar sob a guarda de Tristão e juntos teremos prazer e alegria: ofenda-se quem queira!" "Senhora — perguntou Brangia —, donde vos veio essa nova e quem vo-la disse?" Isolda contou-lhe a conversa da noite com o rei. Imediatamente, Brangia reconheceu a loucura da rainha e disse-lhe: "Não sabeis fingir! O rei experimentou-vos e descobriu-vos, pois ignorais a arte de dissimular os vossos secretos pensamentos. Foi Kariado quem tudo maquinou com o rei para que vos traísseis: não é difícil de adivinhar, observando bem, como ele está secretamente apaixonado por vós e tem ciúmes de Tristão." Brangia deu conselhos à rainha e ensinou-lhe o que devia dizer ao rei para se livrar desse mau passo.
Por seu lado, a conselho de Kariado, o rei tentou experimentar Isolda pela segunda vez. Na noite seguinte, apertou-a ternamente contra o coração e deu-lhe beijos. "Bela amiga — disse —, nada me é tão profundamente caro como vós; e o pensamento de que nos vamos separar, Deus que está no céu bem o sabe, rouba-me o senso." Mas ela viu logo que ele queria experimentá-la como já o fizera. Dissimulou por sua vez e começou a suspirar profundamente: "Infeliz, nasci para o sofrimento e a dor!" "Bela amiga — perguntou o rei —, que tendes e por que essas lágrimas?" Isolda respondeu: "Há muitas razões para os meus cuidados, para os meus sofrimentos intoleráveis, se vós não os quereis suavizar. Pensei que o que me dissestes a noite passada era uma brincadeira e que afirmáveis, por simples gracejo, querer viajar fora do país. Compreendo agora que faláveis a sério. Infeliz a mulher que ama tão ardentemente um homem! Nenhuma mulher mais se deveria fiar num homem se me quereis deixar e abandonar aqui. Onde me deixareis? E qual dos vossos fiéis me protegerá? Por amor de vós, deixei todos os meus sustentáculos: pai e mãe, parentes e amigos. Nunca mais terei consolação, nem de dia nem de noite, se ficar privada do vosso amor. Em nome de Deus, ficai ou deixai-me, cativa, ir convosco!" O rei Marcos respondeu: "Não vos quero deixar sozinha, senhora, uma vez que Tristão, meu sobrinho, vos deve proteger e servir com toda a amizade e decoro. Não há ninguém no meu reino a quem ame tanto como a ele, pela grande cortesia com que vos serve." "Ai de mim — exclamou Isolda —, se é ele que me deve proteger e guardar! Sei o que pensar do seu zelo em me servir e dos seus bons sentimentos: não passam de hipocrisia e de falinhas mansas. Finge ser meu amigo porque matou o meu tio e lisonjeia-me parra que não me vingue dele. Pode, no entanto, ter isto por certo: todos os seus belos semblantes não me podem consolar da grande dor, da vergonha e do mal que causou a mim e à minha família. Se não fosse vosso sobrinho, há já muito tempo que o teria feito sentir a minha cólera. Queria nunca mais o ver, nunca mais lhe falar. Mas é um adágio bem conhecido: um traço repreensível e comum às mulheres é que não gostam dos parentes dos maridos e não os podem suportar, nem de dia nem de noite, ao pé delas. Quis, pois, afastar de mim essa censura, e aceitei os seus belos semblantes e o seu serviço. Mas não quero mais, doravante, ser abandonada ao seu poder. Suplico-vos, sire, que me deixeis antes partir convosco. Soube tão bem enganar o rei com as suas palavras que este deixou cair a cólera. Foi ter com Kariado e assegurou-lhe que não havia nenhum amor entre a rainha e Tristão. Mas Kariado teve o cuidado de ensinar ao rei, com grande astúcia, o que devia dizer a Isolda para experimentá-la uma terceira vez.
Portanto, chegada a noite, Marcos disse à rainha: "A minha partida é coisa bem assente. Ficareis sob a guarda dos meus melhores homens e dos meus amigos, que vos servirão com grande honra segundo os vossos desejos e como convém à vossa linhagem. Mas, uma vez que não vos agrada que o meu sobrinho Tristão vos ofereça o seu serviço, quero, por amor de vós, bani-lo deste país." Sire — replicou Isolda —, não é necessário agir tão duramente. Depois dirão que vos levei a esse extremo e que odiava o vosso sobrinho pelo assassínio do Morholt. Com isso atrairia a reprovação. Ora, não quero que por amor de mim odieis os vossos parentes. Não passo de uma mulher: se rebentar uma guerra, os inimigos arrebatar-me-ão depressa a vossa terra, pois não tenho força para defendê-la. E as pessoas não deixarão de dizer que, se mandei expulsar Tristão, o mais forte sustentáculo do vosso país, é porque o odiava com tal rancor que ele não podia permanecer junto a mim. Escolhei, pois, um destes partidos: deixai-me acompanhar-vos ou então entregai-lhe a guarda e a defesa da vossa terra." Estas palavras de Isolda reanimaram as dúvidas e as suspeitas que torturavam o rei Marcos. Todavia, guiada por Brangia, a sábia, que tratava de reparar os erros da sua senhora, esta ainda escapou ao perigo. Iludindo o seu senhor com palavras falazes, lisonjeando-o com vãs promessas, soube persuadi-lo de que Tristão nada representava para ela e que só à maledicência se deviam atribuir as acusações que o inquietavam. O rei Marcos estava demasiado enamorado da sua bela mulher para duvidar da sua boa fé. Kariado resignou-se e renunciou por algum tempo às acusações contra Tristão. No entanto a inveja havia-se apoderado do seu coração, e não esperava mais que uma ocasião propícia para afastar Tristão da rainha.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora