XXIV O juramento judiciário é exigido à rainha

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AINDA não decorrera um mês quando o rei foi um dia caçar com os traidores, Audret, Gondoine e Denoalen, e mais um grupo de monteiros. Numa charneca, num alqueive que os camponeses haviam queimado, o rei parou, prestando atenção aos latidos dos cães. Os três barões aproveitaram este instante de descanso para abordarem-no e falaram-lhe deste modo: "Rei, perdoaste à rainha, e era teu direito, mas se ela se conduziu como uma mulher leviana, o teu perdão não a dispensa de se justificar segundo a lei desta terra. Vários dos teus homens freqüentemente pediram que um processo fosse instaurado e um julgamento realizado sobre os atos censurados a Isolda e a Tristão. Exige que a rainha a ele se submeta e, se recusar, que deixe por sua vez este reino!" O rei ficou vermelho de cólera: "Por Deus, senhores cornualhenses, não tendes o direito de falar assim. Quando Tristão trouxe a rainha até ao Vau Aventuroso, não se propôs justificar? Quem de vós, nesse momento, ousou pegar em armas contra ele? Bani-o com medo de vos desagradar; obedecer-vos-ei uma vez mais expulsando a minha mulher? Por Santo Estêvão, o mártir, impondes-me exigências demasiado duras: será portanto necessário que vos guerreie. Declaro-vos: dentro de poucos dias, vereis reaparecer Tristão em minha casa! Deus vos destrua, vós que haveis causado a minha vergonha! Sim, chamarei o bravo que expulsastes."
Perante o furor do rei, os três voltam rédeas; na charneca, num valezinho, apeiam-se. Um deles diz: "Que poderemos fazer? O rei Marcos vai chamar o sobrinho, e, se ele volta, lá se vai o nosso crédito e, quem sabe, a nossa vida. Se nos encontrar sozinhos, na floresta ou no caminho, ninguém o poderá impedir de nos tirar o sangue do corpo. É mais conveniente fazermos as pazes com o rei, a fim de que ele renuncie a chamar o sobrinho. Calemo-nos, não lhe peçamos mais nada." Vão ter com o rei, que ficara no alqueive. Marcos viu-os aproximarem-se e jurou entre-dentes não considerar o que lhe poderiam dizer. "Sire, escutai-nos: vós estais triste e enraivecido por nos preocuparmos tanto com a vossa honra. Aconselhamo-vos por dever e vós levai-nos a mal. Porém, uma vez que não nos quereis acreditar, fazei como vos apraz! Calar-nos-emos, pois não desejamos a guerra. Perdoai somente a nossa lealdade." O rei, ainda mais furioso, ergue-se no arção e exclama, o dedo apontado para o horizonte: "Senhores, o caso está arrumado; afastai-vos da minha terra. Por Santo André, a quem vão rezar além-mar até à Escócia, haveis-me feito tal chaga no coração que me atormentará um ano inteiro." "Sire — respon¬deu Audret —, exaltais-vos contra nós sem motivo. Se persistis em querer expulsar-nos, causar-vos-emos preocupações como nunca tivestes." Proferidas estas ameaças, os traidores afastam-se a toda a pressa; têm fortes castelos construídos em altos rochedos e cercados de estacas agudas. Juram que aí se vão entrincheirar e conspirar contra o rei.
Para regressar ao castelo, Marcos não esperou pelos cães nem pelos monteiros. Em Tintagel, diante da torre, desce do cavalo e entra, sem ser visto, no quarto das mulheres. Isolda vem ao seu encontro, tira-lhe a espada, depois senta-se aos seus pés. O rei pega-lhe na mão; ela nota-lhe a expressão selvagem e cruel do seu rosto. "Ai de mim! — pensa com os seus botões —, Tristão foi descoberto! Quem sabe se o rei não se apoderou dele?" Cai de joelhos diante do seu senhor e, o rosto lívido, desmaia. Marcos ergue-a nos braços e dá-lhe beijos, de tal modo que ela volta a si. "Senhora, que tendes?" "Sire, tenho grande medo." "Então de quê?" "Sire, vejo pelo vosso rosto que estais encolerizado. Por que levar tão a sério os acasos e os jogos da caça?" Este dito diverte o rei, que ri e a abraça uma vez mais. "Querida, não é de caça que se trata. Se me vistes em tal furor, foi por culpa de três traidores que, desde há muito, procuram romper o nosso casa¬mento. Dei-lhes demasiada atenção até hoje. Com as suas falsas palavras, afastaram de mim o meu sobrinho, mas quero chamar Tristão, que me vingará e os enforcará." A rainha não ousa dizer alto o que pensa: "Deus seja louvado! O meu senhor enfureceu-se contra aqueles que fizeram nascer o escândalo!" Em seguida, pergunta: "Senhor, que mal disseram de mim? Cada um pode pronunciar as palavras que quiser e, salvo vós, não tenho nenhum defensor; com as suas mentiras, sem descanso nem tréguas, procuram a minha perda." "Senhora — diz o rei —, podeis alegrar-vos, pois bani os três traidores para longe da corte." "Por que, sire? Que mais inventaram?" "Defendem que não justificastes o agravo que vos fizeram de ter amado loucamente Tristão." "Querem verdadeiramente que justifique tal agravo?" "Por certo que o pedem." "Senhor, estou pronta a submeter-me ao que eles exigem, e o mais brevemente possível. Ah!, nunca mais me deixarão uma hora de paz? Mas se Deus manifestar a minha inocência, estou certa de que depois ficarão quietos e não pedirão mais nada! Também quero que o rei Artur e a sua corte assistam ao meu julgamento, Gauvain, o seu sobrinho, Girflet e Keu, o senescal: com eles por testemunhas, pronunciarei o juramento. Senhor, fixai uma data e mandai dizer ao rei Artur que o quereis encontrar, a ele e aos seus fiéis, no dia marcado na Charneca Branca." O rei respondeu: "Rainha, falastes como é de honra." E manda todos os seus homens dirigirem-se ao julgamento.
Quando Marcos saiu do quarto das mulheres, Isolda chamou Brangia de parte disse-lhe: "Procura comigo, peço-te, a maneira como poderei, sem atrair sobre mim por meio de um perjúrio a terrível vingança de Deus, pronunciar sobre as relíquias dos santos o juramento que exigem de mim os traidores." "Senhora, o mais seguro seria recusardes prestar esse juramento, pois se tomais Deus por testemunha perante um tribunal encobrindo ou dissimulando a verdade, o castigo do Todo-Poderoso não se fará esperar! Todos os mais sábios clérigos vo-lo dirão." "Sei-o tão bem como tu. mas os meus inimigos não me darão tréguas enquanto não tiver prestado esse juramento. Também prometi ao rei Marcos submeter-me a esse rito, contanto que seja perante um tribunal de justiça presidido pelo rei Artur, rodeado pelos bravos da Távola Redonda." "Senhora, é a melhor garantia de o direito ser observado nesse julgamento. Mas qual será a fórmula do juramento?" "Terei de jurar que nunca amei Tristão com amor culpado ou ofensivo para o meu marido." "Senhora, não podeis empregar essa fórmula sem cometer perjúrio e incorrer na cólera divina, cá embaixo e no outro mundo. O filtro pôde muito bem servir de desculpa perante o eremita Ogrin, como me haveis contado, mas não vos autoriza a jurar contra a verdade. Acreditai-me, tendes de empregar outra fórmula, com palavras tão bem escolhidas e tão engenhosamente compostas que possam ser interpretadas no sentido da verdade por aqueles que a sabem e num sentido muito diferente por aqueles que a não conhecem." As duas mulheres começaram então a procurar juntas: imaginaram, para sossegar o rei Marcos sem ofender a Deus, um estranho estratagema para o qual o concurso de Tristão era necessário. Brangia riu muito só à idéia do ardil e Isolda divertiu-se com ela.
Já todos sabem pelo país o dia da assembléia e que o senhor da Távola Redonda aí estará com toda a sua corte. Marcos manda Périnis levar o mais depressa possível uma mensagem ao rei Artur, rogando-lhe que presida ao julgamento; Isolda chama Périnis antes da partida e ordena-lhe que passe primeiro por casa do florestal Orri para prevenir Tristão do que deverá fazer: "Diz-lhe que no dia marcado se encontre sem falta no Pântano do Mau Passo, perto do vau que domina a Charneca Branca, e que separa o reino de Artur do reino da Cornualha; que esteja no outeiro onde começa o paneiro de vigas e de ramagens que serve para passar o lodo. Quero que se enfarpele com farrapos como um le¬proso, que segure numa das mãos um cálice de madeira e que se apóie com a outra na muleta. O rosto deve estar pintado e inchado: ele sabe o segredo. A todos os que vierem assistir aos debates, pedirá esmola. Lá estarei, mas fingirei não o reconhecer. Que fique descansado, pois saberei fazê-lo representar o papel, com a condição de se deixar manejar e de me obedecer em tudo."
Périnis parte e chega a casa de Orri ao cair da tarde, no momento em que o florestal e os hóspedes acabam de comer. Tristão acolhe-o com alegria e escuta a mensagem. Jura que todos aqueles que pensaram mal e censuraram a amante agiram no sentido da sua própria infelicidade. "Diz à rainha que, no dia fixado, me encontrarei no local marcado, coberto de andrajos co¬mo um pedinte. Mendigarei tão bem que o rei Artur, o rei Marcos e todos os outros se não poderão dispensar de me dar esmola. Acrescenta que acho muito bom tudo o que faz e fará para vencer a prova do juramento e que lhe quero obedecer em tudo. Que se mantenha de boa saúde e alegre: será vingada daqueles que lhe estragam a vida. Leva-lhe finalmente a saudação e a homenagem que devo à sua lealdade." Périnis montou de novo e cavalgou até ao castelo de Durham, onde se encontrava a Távola Redonda. Aí, perante o rei Artur e a sua corte, contou como a rainha Isolda aceitara justificar-se com o juramento e qual o dia e o lugar fixados pelo rei Marcos para o julgamento. Os barões enfureceram-se contra os três traidores da Cornualha: sire Gauvain e o bravo Girflet desfizeram-se em ameaças, pedindo ao rei permissão para matá-los em duelo. Artur era demasiado cortês para o consentir: "Senhores — disse —, livrai-vos dos arrebatamentos da cólera e de qualquer descortesia; ponde antes a vossa honra em aparecerdes todos na assembléia desse julgamento no vosso mais belo corcel, com escudo novo e rico paramento, por cortesia para com a rainha Isolda." Em seguida, o rei quis escoltar em pessoa o mensageiro, encarregando-o de levar os seus respeitos à senhora da Cornualha.
No caminho, Périnis encontrou o florestal que, não há muito, fora à corte do rei
Marcos, todo esbaforido, comunicar-lhe que descobrira os amantes numa cabana de Morois, mas ficara bem decepcionado, pois nunca recebera a recompensa prometida. Depois disso, num dia em que estava bêbado, o florestal havia-se gabado da traição e queixara-se da ingratidão de Marcos. Périnis reconheceu-o imediatamente. O homem acabava de cavar, no solo da floresta, um buraco profundo e cobria-o habilmente com uma camada de ramos, para apanhar na armadilha lobos e javalis. Viu arremessar-se contra si o lacaio da rainha e quis fugir; mas Périnis empurrou-o para a berma do fosso: "Espião, que vendeste a rainha, para que fugir? Fica aí, ao pé da sepultura que tu pró¬prio tiveste o cuidado de cavar." Fez girar o pau de carvalho nodoso, e bate na fonte do fronte do traidor com tal violência que ele caiu inanimado. Périnis, o louro, o fiel, empurrou com o pé o corpo para o fosso, depois tapou-o com torrões de terra e folhas secas.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora