XVII O salto da capela

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O boato de que o rei surpreendera juntos Tristão e a rainha graças aos sortilégios do anão Frocin corre e espalha-se por toda a cidade: Marcos, na sua cólera, resolveu condená-los à morte sem julgamento. Choram grandes e pequenos. Não há ninguém, entre o povo, que se não apiede da sorte dos amantes nem deseje o Inferno para o anão, causa de todo o mal. "Ah! — diziam — temos boas razões para chorar e nos afligir! Como pode o rei enviar para o suplício o bravo que sozinho ousou combater o Morholt e nos libertou da servidão? Não admitiremos que o seu corpo seja destruído. Ah, rainha nobre e honrada, haverá alguma terra onde se tenha visto nascer uma filha de rei com o teu valor? Ah, anão maldito, oxalá a tua feitiçaria não conduza à sua perda! Levantemo-nos contra tal iniqüidade: vamos ter com o rei, ele tem de nos ouvir!" E eis o povo que, em grande tumulto, se junta diante do palácio para implorar o perdão dos dois cativos. As lamúrias e os gritos redobram, mas tal é o furor do rei que nenhum barão ousa arriscar uma única palavra para aplacá-lo.
A noite chegava ao fim. Já a aurora iluminava a cidade e os campos. Marcos, que não pudera dormir, de tal modo o seu coração estava atormentado, levantouse cedo e cavalgou com os fiéis até uma vasta planície, a alguma distância das muralhas da cidade. Ordenou que cavassem uma vala profunda e aí deitassem um monte de sarmento de vinha e moitas de espinheiros-alvares e acácias-daeuropa arrancadas com as raízes. À primeira hora, convocou ao som da trombeta os vassalos da Cornualha, que chegaram por caminhos e atalhos, em grande pressa. Quando já se encontravam reunidos na planície, o rei dirigiu-lhes a palavra: "Senhores, a minha mulher e o meu sobrinho são acusados de traição para comigo. Seguindo a lei do país, pagarão esse crime com a vida e, por minha vontade, os seus corpos serão reduzidos a cinzas na pira."
Ao som destas palavras, um longo clamor elevou-se da multidão: "Sire, piedade para Tristão! Piedade para Isolda! Não foram julgados: concedei-lhes uma prorrogação para ouvir a sua defesa! Seria um grande pecado condená-los à morte sem julgamento." Mas nada conseguia acalmar a cólera de Marcos. "Em nome d'Aquele que criou o Céu, a Terra e o Inferno — exclamou —, ainda que com isso perdesse o meu reino, nada me poderá desviar do meu desígnio! Declaro-vos: se mais alguém ousar requerer um julgamento para eles, esse será o primeiro a arder neste braseiro." Ordena que acendam o fogo e que vão primeiro buscar Tristão à prisão: ele deve ser queimado em primeiro lugar. Os espinheiros começam a flamejar e a crepitar, todos se calam, o rei aguarda ansioso. Os lacaios correm até ao quarto onde os amantes estão estreitamente guardados. Arrastam Tristão com as mãos atadas. Quando a rainha vê partir o amado, chora e sente grande dor. "É uma grande vergonha — diz — ver Tristão todo amarrado e tratado como um devasso! Doce amigo, daria de bom grado a minha vida para salvar a tua: saberias vingar-me em seguida."
Escutai, senhores, como Deus, que nos julgará a todos, teve piedade dos amantes: os lamentos que deixaram Marcos insensível, ouviu-os Ele e tomou em conta as preces da multidão por aqueles que iam suplicar. No caminho que ia do castelo à planície onde a pira estava armada elevava-se, por cima do oceano, uma colina escarpada onde se situava uma capela, batida pelo vento norte. Se um esquilo saltasse do alto do rochedo, não conseguiria salvar-se, morreria imediatamente. A abside da capela, construída no rés da falésia, era furada por um único vão guarnecido com um vitral em tons purpúreos, que um santo, outrora, executara com as suas próprias mãos. Quando Tristão e os guardas passaram diante da capela, viram, pela porta entreaberta, que a nave estava cheia de gente que rezava ao santo pela salvação dos condenados. Então Tristão pediu aos que o levavam: "Senhores, deixai-me entrar nesta capela: já não me resta muito tempo para viver e gostaria de pedir a Deus que me concedesse a remissão dos meus pecados. Que receais? Esta porta é a única por onde se pode entrar e sair: tenho mesmo de passar por aqui e vós estais armados com sólidas espadas. Desprendei-me por um instante, pois não convém que um homem, amarrado como estou, entre para rezar num lugar santo." Os guardas estavam indecisos e interrogavam-se um ao outro sobre o que deviam fazer: "Ele tem razão — disse um deles. — Que arriscamos? Podemos soltá-lo um ins¬tante e deixá-lo ir: como poderia escapar-nos, uma vez que não há outra saída além desta?" Os guardas desamarram-no e deixam-no entrar. Tristão transpõe a soleira sem se apressar; depois, com um passo rápido, atravessa a nave por entre os fiéis prosternados, avança para o coro até atrás do altar e salta para a janela do belo vitral. Abre-a e, com um brusco impulso, atira-se no vácuo. Mais valia correr o risco de partir os ossos contra a falésia do que ser ignominiosamente queimado sob os olhares de todos! Senhores, havia ao rés da falésia, mesmo embaixo da janela, uma larga mesa de pedra: Tristão aterrou sem se magoar nesse patamar, pois, por vontade de Deus que o protegia, o vento engolfara-se nas roupas e amorteceralhe a queda. Ainda hoje, as pessoas da Cornualha mostram este patamar e chamam-lhe "O salto de Tristão". Da mesa de pedra, Tristão pulou para a areia e correu a toda a velocidade pela charneca, na direção da floresta. Vários dos que estavam a rezar na capela vieram à janela e gritaram que era milagre, vendo Tristão são e salvo fugindo à beira-mar.
Enquanto Tristão se volta um instante e vê subir ao longe o fumo da fogueira, as testemunhas da sua evasão espalham-se pela cidade, de tal modo que em breve a notícia é conhecida de todos. O fiel Gorvenal acorre imediatamente à rédea solta e, levando também o cavalo de Tristão, junta-se-lhe na charneca: "Amigo, tragote a espada, o lorigão, o elmo e o cavalo: Deus concedeu-te a liberdade, ser-te-á necessário combater duramente para conservá-la." Tristão, sem dizer palavra, endossou o lorigão, enfiou o elmo, cingiu a espada e saltou para a sela do cavalo que Gorvenal lhe trazia. Apenas armado, Tristão quis logo arremessar-se contra a pira, cuja crepitação chegava até ele. "Deus concedeu-me a liberdade — disse —, mas de que me serve, se estou separado de Isolda? Antes me tivesse esmagado contra a pedra ao saltar da capela! Isolda, Isolda, minha doce amante, estou livre, mas tu vais ser queimada!"
Gorvenal agarra-lhe no braço e segura-o: "Filho, não nos apressemos, aguardemos o momento propício. O furor do rei é extremo e os burgueses estão aterrorizados. Os que mais te amam, se ele lhes mandar baterem-te, não ousarão desobedecer, pois, como se costuma dizer, cada um se ama mais que ; ao próximo. Assim, deixar-te-ás apanhar e matar em vão, sem proveito para Isolda." Tristão abanou a cabeça e pareceu resignar-se. "Que me aconselhas?" "Vês ali embaixo aquele espesso bosque, cercado por fossos? Escondamo-nos lá e ouviremos sem ser vistos o que dizem as pessoas que passam pela estrada. Por eles saberemos o que acontecerá a Isolda e poderemos, no momento mais favorável, quando a emoção da multidão atingir o auge, surgir bruscamente a galope e raptá-la, se Deus nos ajudar, à viva força." "Embosquemo-nos então!" Ora, quando Tristão saltara da capela ao pé da falésia, um pobre homem que passava por ali vira-o levantar-se e fugir. Correu ao castelo do rei e chegou ao cárcere da rainha. E antes que os guardas o pudessem afastar gritou-lhe: "Rainha, não chores mais! O teu amado fugiu." "Deus seja louvado —• disse Isolda. — Agora, que os traidores me amarrem ou desamarrem, que me poupem ou me matem, não me importa já! Uma vez que Tristão está livre, sei que os traidores e o anão, seu maldito servidor, terão em breve a recompensa devida! Agora, não chorarei mais."

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