XXXVI A morte dos amantes

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CÓLERA de mulher é coisa temível: todo o homem se deve preservar dela, pois onde uma mulher mais amou, aí porá o máximo de ardor a vingar-se. Nas mulheres, o ressentimento dura mais tempo que a afeição: elas que regateiam o amor, prodigalizam ao desbarato o ódio enquanto durar a cólera. Thomas de Inglaterra não ousa dizer todo o seu pensamento sobre esta questão: não é assunto de um poeta.
Isolda das mãos brancas, escondida do outro lado da parede, escutara e surpreendera a conversa secreta de Tristão, seu marido, com Kaherdin, seu irmão. Eis que descobriu, de repente, todo o mistério daquele amor! A cólera enche o seu coração: não desejou tanto Tristão para vê-lo voltar-se para outra!
Agora compreende bem por que é que Tristão, desde que casara com ela, perdera toda a alegria e jovialidade. Fixa todos os pormenores do que ouviu por manha, fingindo ignorá-lo, mas, mal tenha ocasião, vingar-se-á cruelmente do homem que crê amar mais que tudo no mundo. Assim que se abriram as portas, Isolda entrou no quarto. Dissimula a Tristão a cólera, serve-o com cortesia e mostra um rosto afável, como uma amiga deve mostrar ao seu amigo. Por vezes, até o beija e abraça; simula um perfeito amor, mas medita numa vingança traiçoeira e espreita o momento de saciar o seu rancor. Por vezes procura saber notícias; pergunta quando Kaherdin deve regressar com o médico que curará Tristão. Todavia, é falsamente que geme com o sofrimento do marido: a dissimulação escolheu para morada a sua alma e ela conta, se tiver poder para tal, castigar cruelmente Tristão pelo que considera uma infidelidade e um ultraje. Entretanto, Kaherdin voga no alto mar. Aporta em Tintagel e desembarca com as mercadorias. Diante do castelo do rei, desenfarda a pacotilha, estende os panos de seda, expõe em gaiolas os pássaros de Espanha, matizados e soberbos. Tão depressa empunha um açor na muda, como logo desdobra um pano de seda tecido do Oriente. Eis, finalmente, uma taça de trabalho delicado, cinzelada e niquelada. Oferta-a ao rei Marcos e diz-lhe, com a maior boa vontade do mundo, que vem ao seu reino portador de ricos tesouros, na esperança de ganhar ainda mais. O rei dá-lhe toda a liberdade e segurança para vender as mercadorias no seu reino.
Kaherdin solicita então permissão para ir apresentar à rainha Isolda as suas ricas jóias. Presenteia-lhe uma fivela de ouro fino, a mais delicadamente trabalhada, afirma, que há em todo o mundo. Nunca Isolda vira uma tão bela. Então Kaherdin, tirando do dedo o anel de jaspe verde que Tristão lhe confiara, colocao ao lado da fivela e diz: "Rainha, vede como as pedras preciosas encastoadas na fivela têm menos brilho que o jaspe verde no qual é feito o engaste deste anel!" Mal a rainha vê o anel, não se engana: é aquele mesmo que dera a Tristão. Examina mais de perto os traços do mercador e reconhece nele Kaherdin, o companheiro de Tristão. Então o coração salta-lhe no peito, empalidece e suspira profundamente, pois teme que o pretenso mercador seja portador de má notícia.
Para saber mais, pergunta se quer vender o anel de jaspe verde e que soma deseja. Kaherdin, fingindo discutir o preço, segue-a até um canto do quarto: "Rainha — diz —, escutai bem o que vos vou anunciar: Tristão, o vosso amigo, saúda-vos como a dama em quem está a sua vida e a sua morte. Faz-vos saber que foi ferido por uma lança envenenada: enlanguesce com dores horrorosas e não tem mais nenhuma esperança de recuperar a saúde e a vida se vós não vierdes curá-lo em pessoa. Jaz em grande dor, deitando, um cheiro repugnante e intolerável. Se lhe recusais a vossa ajuda, não poderá sobreviver. Pela fidelidade que lhe deveis, não hesiteis por nada deste mundo em responder ao seu chamamento. Vim expressamente para conduzir-vos até ele." Ao ouvir esta mensagem, Isolda fica tomada de uma angústia como jamais conhecera. A resolução é rapidamente tomada: vai tentar a viagem e acompanhar Kaherdin na nau.
Lá para a noitinha, Isolda prepara com a ajuda de Brangia aquilo de que necessita para a travessia e aguarda, para sair do castelo, que toda a gente esteja a dormir. Já noite cerrada, enquanto Brangia fica de atalaia, sai furtivamente do palácio sem alertar quem quer que seja, deslizando por uma poterna baixa que desembocava no mar. O barco de Kaherdin espera perto dali. Assim que a rainha subiu a bordo, os marinheiros fazem-se à vela e vão impulsionados pelo vento. Em breve a nau ligeira aponta para a costa armórica.
Ora, Tristão, a quem a chaga retém estendido, sofre o martírio no seu leito: nada o consegue aliviar, nenhum remédio lhe serve e, o que quer que faça, nada o acalma. Se ainda se esforça por prolongar a vida, é porque aguarda a chegada de Isolda, a loura, esperando que ela venha e lhe alivie o mal. Todos os dias envia alguém à beira-mar para espiar o retorno de Kaherdin, e este único desejo lhe absorve todo o ardor da alma. Por vezes, ordena que o levem para a costa, que lhe façam a cama diante do mar para ver se a nau está à vista e que vela arvora. Por vezes também manda que o tragam de regresso a casa com medo da infelicidade que já adivinha, pois receia de repente que a rainha não venha; se tal acontecesse, preferiria sabê-lo por outrem a ver com os seus próprios olhos o navio regressar sem ela. De volta a casa, queixa-se muitas vezes à mulher, mas sem lhe revelar a verdadeira causa do seu tormento; deplora unicamente a lentidão de Kaherdin, que tarda a trazer o médico de que necessita.
O navio que trazia a amiga tão desejada aproxima-se agora da costa. A roda da proa traçava nas vagas uma alegre esteira quando uma borrasca se levantou, pegou no mastro com vento de proa e fez o navio girar. Os marinheiros acorrem ao ló, voltam a vela, mas em vão: quer queiram quer não, são impelidos para o largo. O vento sopra furiosamente, levanta as vagas, o mar agita-se até às profundezas, o céu escurece e uma bruma espessa estende-se sobre as ondas negras. Chove, saraiva; no céu amontoam-se nuvens, no barco bolinas e cordames partem-se com estrondo. Descem o mastro e avançam bordejando com o vento e as vagas. Isolda, a loura, impressionada com o espetáculo da tempestade, dirige-se a Tristão como se este a pudesse ouvir: "Deus não me quer deixar viver o suficiente para te rever, meu amor. Decidiu que eu pereceria afogada no mar. Tristão, se pudesse falar-te ainda uma vez mais, não me importaria com a minha morte. Mas não depende da minha vontade estar perto de ti nesta hora; se Deus o permitisse, já estaria ocupada a curar o teu mal. Amigo, eis o fim de um sonho! Pensava morrer nos teus braços e repousar contigo no mesmo túmulo. Ai de mim! É mais uma ilusão que temos de perder!" Durante dois dias, a borrasca e a tempestade fustigaram o mar; no terceiro, o vento amainou e o bom tempo voltou. Kaherdin, olhando de longe, viu surgir na bruma as falésias da costa bretã. Radiante, mandou desfraldar o mais alto possível a vela branca, a fim de anunciar a Tristão a boa nova: Isolda, a loura, chega! Estava a chegar ao fim o prazo de cerca de quarenta dias que Kaherdin fixara a Tristão para a viagem. Cúmulo do infortúnio: eis que o vento abranda, o sol aquece. O mar fica numa calmaria total, a nau não se move nem para um lado nem para outro e deixa-se embalar pelo marulho das vagas. Os marinheiros estão exasperados: a terra está ali à vista deles, mesmo próxima, e nenhuma brisa os empurra para ela. Ei-los no pior dos embaraços.
Entretanto, Tristão, doente e cansado, por vezes queixa-se, por vezes suspira por Isolda que tanto deseja. Torce as mãos e as lágrimas correm. Neste desgosto, nesta angústia, vê a mulher avançar para ele; esta se lembra de um pérfido artifício e diz-lhe: "Kaherdin está a chegar! Avistei a nau ao longe no mar. Estou certa de que é a sua. Deus queira que vos traga uma nova da qual tireis reconforto!" Ao ouvir estas palavras, Tristão sobressalta-se e pergunta: "Bela amiga, estais absolutamente certa de que é a nau de Kaherdin?" "Não duvideis; reconheci-a bem." "Dizei-me, peço-vos, não mo escondais: de que cor é a vela que esvoaça na verga?" Isolda responde numa voz que deseja segura: "A vela é preta!" Tristão não responde nada. Volta-se para a parede e diz: "Isolda, não quisestes vir para junto de mim! Por vosso amor tenho de morrer hoje!" Depois, após um curto instante, acrescenta numa voz apagada: "Não posso reter a vida mais tempo." Por três vezes, pronunciou: "Isolda, meu amor!"; a quarta, entregou a alma a Deus.
No mesmo momento, o vento levantou-se no mar: conduziu sem tardar até à margem a nau de Kaherdin. Antes de qualquer outra pessoa, Isolda, a loura, desceu a terra. Ouve grandes lamentos elevarem-se nas ruas de Karhaix e o dobre que soa nos campanários das igrejas. Pergunta aos transeuntes a razão por que tocam os sinos, por quem chora todo aquele povo. Um velho responde-lhe: "Bela dama, que Deus me ajude! Aconteceu nesta terra uma grande infelicidade: Tristão, o bravo, o franco, morreu! Acaba de falecer na cama de uma ferida de que nenhum médico o pôde curar." Ao ouvir esta notícia, Isolda, a loura, fica muda de dor. Corre pelas ruas como uma louca, o vestido desapertado, pois quer chegar antes dos outros ao castelo. Os bretões admiram-na à passagem: jamais haviam visto mulher de semelhante beleza, mas não sabem nem quem é nem donde vem.
Isolda transpõe a porta do castelo e atinge logo o quarto onde repousava o corpo do amigo. Isolda das mãos brancas lamentava-se diante do corpo, chorando e soltando grandes gritos. A recém-chegada, pálida e sem uma lágrima, aproximase dela e diz-lhe: "Mulher, levanta-te e deixa-me sozinha aqui. Tenho mais direito de me afligir do que tu. Acredita-me: amei-o mais!" Mantém-se em pé diante do leito fúnebre, a cabeça voltada para a frente, as mãos erguidas para o céu, e reza em silêncio; em seguida dirige-se a ele para deplorar o seu falecimento: "Tristão, morreste por amor de mim. Uma vez que já não vives, também eu não tenho nenhuma razão para viver. Tudo doravante me será sem doçura, sem alegria, sem prazer. Maldita seja a tempestade que me atrasou no mar! Se tivesse podido chegar a tempo, ter-te-ia devolvido a saúde e teríamos docemente falado do terno amor que nos une. Mas já que te não posso curar, que possamos ao menos morrer juntos!" Aproxima-se do leito e estende-se a todo o comprido sobre o corpo de Tristão, rosto com rosto, boca com boca. Neste abraço supremo, sucumbe à violência da dor e expira num soluço.
Kaherdin, com o assentimento do duque Hoël, seu pai, já demasiado idoso para tomar decisões, mandou prestar as honras fúnebres à rainha Isolda e a Tristão. Mandou embalsamar os corpos com vinho, pimenta e ervas aromáticas e colocar cada um, toado numa pele de veado, numa barca feita de um tronco escavado ao fogo. Os dois corpos foram assim transportados por um navio até ao porto de Tintagel e entregues ao rei Marcos por um enviado de Kaherdin.
"Sire — disse o mensageiro —, o duque Hoël da Bretanha e Kaherdin, seu filho, enviam-vos por mim saudações e amizade. Encarregaram-me de vos entregar os corpos da rainha Isolda, a loura, vossa mulher, e do bravo Tristão, vosso sobrinho, cujas almas ponha Deus entre o escol do Paraíso! Tristão, que libertou o ducado da Bretanha de todos os seus inimigos e tornou por mulher a filha do duque Hoël, foi ferido pela lança envenenada de um anão que Deus amaldiçoe! Como todos os médicos eram impotentes para curar a ferida, mandou chamar a toda a pressa a rainha Isolda, vossa mulher, que já por duas vezes, por meio da alta ciência herdada da mãe, o havia arrancado à morte. Infelizmente, embora tenha acorrido ao primeiro apelo, chegou demasiado tarde a Karhaix, quando Tristão acabava de entregar a alma a Deus, e ela própria morreu de comoção e compaixão. Possa o Senhor Todo-Poderoso conceder-vos amparo e consolação no momento em que haveis perdido ao mesmo tempo a mais bela das mulheres e o mais valente dos sobrinhos! Possa Ele conceder-vos longa vida, saúde, honra e vitória sobre os vossos inimigos!"
O rei Marcos ficou comovido com este discurso, e quando viu os dois corpos embrulhados nas peles de veado e deitados nas barcas, sentiu extinguir-se a cólera e acalmar-se o ressentimento, como outrora, quando havia descoberto os dois fugitivos estendidos lado a lado na cabana de folhagem de Morois. Com grandes honras, no meio das lamentações do povo, mandou enterrar perto de uma capela os corpos dos dois amantes. No túmulo de Isolda, a loura, plantou uma roseira vermelha e no de Tristão um cepo de nobre vinha. Os dois arbustos cresceram juntos e os seus ramos entrelaçaram-se tão intimamente que foi impossível separá-los; de cada vez que os podavam, tornavam a crescer com todo o vigor e confundiam a sua folhagem.
Aqui acaba o romance de Tristão e Isolda. A todos os amantes, o narrador dirige a sua saudação: aos sonhadores, aos enamorados, aos ciumentos, a todos aqueles a quem o desejo morde, aos divertidos, aos enlouquecidos, a todos aqueles que lerem esta história! Se não disse a todos o que teriam desejado, disse-o pelo menos o melhor que pude e disse a verdade pura tanto quanto a pude conhecer. Suprimi um pouco à narração; o que conservei, escolhi-o para ilustrar e embelezar esta história, a fim de agradar aos amantes e de estes aí encontrarem com que deleitar o coração. Possam eles dela tirar reconforto contra as traições, contra as injustiças, contra as dores, contra as lágrimas, contra todos os desgostos de amor!

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