NO QUARTO da rainha, Tristão é bem tratado e cuidado. Recupera pouco a pouco a força e a saúde. A rainha pergunta-lhe: "Amigo, quem és? Donde vieste? Como mataste o dragão?" "Rainha, sou um vassalo da Flandres e percorro as terras estrangeiras à procura de aventuras e façanhas. Quando cheguei a Weisefort, ouvi falar dos danos que o dragão causava a todo o vosso povo e armei-me, firmemente decidido a defrontá-lo e vencê-lo. Só queria experimentar a minha força e a minha resistência contra esse monstro. Ora, aconteceu, pela vontade de Deus, que o matei. Como troféu da vitória, cortei-lhe a língua e a escondi no meu calção, a fim de poder apresentá-la ao rei Gormond. Quando desmaiei nas ervas do pântano, julguei ter chegado a minha hora; estava tão profundamente desfalecido que não vi quem se aproximou de mim." A rainha disse-lhe: "Amigo, sou a rainha da Irlanda. Fui ter contigo com a minha filha Isolda. Mandamos trazer-te para aqui em segredo e afastamos o veneno do teu corpo: eis-te curado!" "Senhora, que Deus me permita mostrar-vos o meu reconhecimento pela vossa ajuda; quero doravante servir-vos o melhor que possa." "Dir-te-emos, então, amigo, que recompensa esperamos de ti: bravo como és, podes ser-nos de grande socorro. O nosso senescal, Aguinguerran, o Ruivo, pretende ser o matador do monstro e quer que a minha filha Isolda lhe seja entregue em recompensa com metade deste reino, como o rei meu marido prometeu. Mas Isolda, minha filha, recusa-se a pertencer ao senescal, pois ele é um louco inchado de desmesura, velhaco e perverso, sem fé, astuto e invejoso, odiado de todos, covarde e cheio de outros vícios vergonhosos. Isolda preferiria matar-se a entregar-se a ele. A cortesia da minha filha e a vilania desse homem são coisas que não se podem harmonizar. É por isso que temos de provar perante o rei que o senescal não matou o dragão. Tu, que mataste o monstro, se queres assumir contra esse homem a defesa da jovem e de todo o reino, adquirirás grande fama nesta terra. Além disso, se o desejares, o rei dar-te-á sem hesitar a filha e a terra que prometeu ao vencedor." "Deus sabe que — respondeu Tristão —, para vos servir, quero desmascarar o senescal e provar que não matou o dragão, pois apresentarei perante a corte a língua do monstro que cortei logo após o ter morto. Se ele quiser sustentar a sua afirmação por meio de uma batalha, defenderei Isolda contra ele, que não a obterá, pois reclama-a sem razão, com mentiras, fanfarronice e presunção."
A rainha afastou-se então, mas a jovem Isolda não cessou de servir Tristão o melhor que pôde e de o prover com todas as iguarias que aumentam o vigor do corpo. A sua força voltava sensivelmente e o rosto reencontrava de dia para dia a sua máscula beleza. Um dia em que Tristão estava sentado numa bacia de mármore antigo, onde tomava um banho de água salutar, a jovem Isolda assistiao, a fim de curar por completo o corpo do valente. Observou longamente o seu rosto e o seu peito e pensou consigo mesma: "Se este homem é tão valente como belo, saberá sustentar um rude combate contra o senescal." Quando se inclinou por cima da banheira, Tristão viu de perto os seus longos cabelos louros; admirou como tinham a mesma cor de ouro do cabelo levado a Marcos por uma andorinha. O seu olhar foi da cabeleira de Isolda ao cabelo que mandara tecer na túnica, pendurada perto. Na sua alegria, viu-se a sorrir à idéia de que havia sido bem-sucedido nesta busca, julgada por outros, ilusória, a da donzela dos cabelos de ouro.
A jovem apercebeu-se deste sorriso, admirou-se e, por timidez juvenil, supôs que Tristão divertia-se com a sua falta de jeito. "Por que terá sorrido este nobre estrangeiro? Terei cometido por falta de educação alguma coisa inconveniente? Negligenciei algum dos serviços que uma jovem de alta posição social deve prestar ao seu hóspede? Talvez devesse ter o cuidado de lavar a lâmina da espada, ainda enegrecida pelo sangue impuro do dragão?" Tira a dura lâmina da bainha para a lavar e enxugar, mas apercebe-se de que esta apresenta uma longa brecha; os contornos da fenda trazem-lhe imediatamente à memória os do fragmento de aço que a mãe outrora extraíra do crânio do Morholt. Hesita um instante, observa uma vez mais a rotura da espada, quer libertar-se da dúvida. Vai direita ao escrínio onde está guardado o fragmento de aço, retira-o e ajusta-o a tremer à brecha do metal: o ajustamento é tão perfeito que mal se nota o vestígio da rotura. Precipita-se então sobre Tristão, trêmula de cólera, e, fazendo girar a grande espada sobre a cabeça do ferido, grita: "Miserável, és Tristão de Leônis, o assassino do Morholt, o meu querido tio, e foi com esta espada que lhe fendeste o crânio! Soubeste esconder-te durante longo tempo, mas de hoje em diante ninguém mais acreditará nas tuas mentiras! Morre, pois, por tua vez com esta mesma espada, a fim de ser vingado o assassínio do meu tio!"
Tristão quis fazer um gesto para parar o seu braço. Em vão: o corpo ainda estava entorpecido e só o espírito continuava ágil. Falou, pois, habilmente: "Espera! Deixa-me dizer-te unicamente algumas palavras! Se estás resolvida a matar-me sem defesa neste banho, seja, morrerei. Mas para te poupar no futuro longos arrependimentos, ouve-me um momento, filha de rei! Fica sabendo que não só tens o direito, mas também o dever de me matar: sim, tens direito sobre a minha vida, uma vez que ma conservaste e devolveste duas vezes. A primeira vez, quando fingi ser um jogral chamado Tãotris, com a tua mãe, curaste a minha ferida. Não lamentes ter sarado esse ferimento: não o recebera eu de teu tio, o Morholt, em leal combate? Não matei o Morholt à traição: lançara-me o seu desafio, como a todos os homens da Cornualha. Não era meu dever defender o meu povo e o meu corpo?"
"Pela segunda vez, acabas de me salvar levantando-me, inanimado, das canas do pântano, depois do meu combate com o dragão. Já que, por duas vezes, me salvaste da morte, podes reaver essa vida que me conservaste. Mata-me, pois, se julgas com isso ganhar louvor e glória. Não esqueças, no entanto, que aceitei ser o teu campeão; comprometi-me a travar batalha para defender a tua honra contra Aguinguerra, o Ruivo. Quando estiveres deitada entre os braços do valente senescal, ser-te-á agradável pensar no teu hóspede ferido que arriscou a vida para conquistar-te e que tu mataste no banho, sem que tenha podido fazer um gesto para defender-se!"
Ao ouvir estas palavras, a jovem ficou um instante interdita, depois o braço deixou cair lentamente a espada que havia brandido. "Ouço palavras enganadoras — disse. — Não te surpreendi fitando-me a sorrir? Por certo que podias troçar de mim ao veres a sobrinha bem-amada do Morholt ocupada a cuidar do teu banho como uma criada!" "Não, de modo nenhum era essa a causa do meu sorriso: o que o fazia nascer nos meus lábios era a vista dos teus cabelos louros, como mulher alguma jamais teve. Comparava-os com o cabelo de ouro que uma andorinha levou de além-mar a meu tio, o rei Marcos da Cornualha. E ele achou tão belo esse cabelo de ouro que jurou perante os barões que nenhuma mulher, a não ser aquela a quem pertence este cabelo, seria sua esposa. Parti pelo mar aventuroso em busca dessa mulher e eis que te encontrei;, por isso sorri. Vê esse cabelo cosido entre os fios de ouro da minha túnica; a cor dos fios de ouro foi-se, o ouro do cabelo não descorou." Isolda tomou nas mãos a túnica de Tristão, viu o cabelo de ouro e procurou inutilmente dissimular a emoção. Depois, a perturbação deu lugar à indignação: "Então conquistaste-me matando o dragão, mas, em vez de casares comigo, como é teu direito, queres entregar-me ao teu senhor, o rei Marcos! Receberei a sorte de uma cativa que um chefe de guerra obtém quando da partilha do saque? Ah, sem dúvida, como o Morholt queria outrora trazer na sua nau a flor dos rapazes e das donzelas da Cornualha para servirem a bel-prazer senhores irlandeses, assim, por tua vez, em represália, gabaste-te de levar na tua nau como uma escrava aquela que o Morholt mais amava entre as donzelas!"
Isolda, deixando Tristão no banho, saiu e encaminhou-se para outro quarto, onde estavam sua mãe e a criada Brangia, que fora, desde a sua mais tenra infância, a companheira dos seus jogos e a confidente dos seus pensamentos. Vendo a profunda inquietação de Isolda, as duas mulheres perguntaram-lhe a causa. Ela contou-lhes como havia reconhecido no matador do dragão Tristão de Leônis, o assassino do Morholt, graças à brecha da espada: "Tê-lo-ia morto no banho com essa mesma espada se ele não tivesse parado o meu braço com palavras cheias de astúcia e de manha." Com esta notícia, a própria rainha ficou numa agitação indescritível, censurou Isolda por ter tido piedade do assassino do tio e garantiu que ela própria iria fazer pronta e rápida justiça. Mas Brangia, a sábia, a avisada, juntou-se a Isolda para acalmar a cólera da rainha: "Senhora — dizia —, uma única coisa importa neste momento: que vossa filha não seja de modo algum entregue ao covarde senescal para vergonha e infelicidade de toda a sua vida. Tristão de Leônis, visto que é ele o vencedor do dragão, deu-vos a sua palavra de que libertaria Isolda das pretensões do senescal. Não será essa a única coisa que conta para vós, presentemente? Vamos primeiro ao mais urgente, e, quando Aguinguerran, o Ruivo tiver sido humilhado e rejeitado, procuraremos um meio qualquer para impedir que Isolda seja dada contra a sua vontade ao rei Marcos da Cornualha." A rainha da Irlanda reconheceu, como a filha, a sabedoria do conselho de Brangia. As três estavam juntas no quarto da rainha, onde Tristão, saído do banho, repousava num leito. Isolda, sem dizer uma palavra, aproximouse dele e, diante da rainha e de Brangia, em sinal de acordo, beijou-o na boca. Pouco depois, a rainha e a filha foram ter com o rei e anunciaram-lhe que haviam finalmente descoberto o verdadeiro matador do monstro. Isolda dirigiuse ao pai nestes termos: "Sire, recolhemos no quarto da rainha um homem pronto a provar que libertou a vossa terra do flagelo e que a vossa filha não deve ser abandonada a um covarde e, além do mais, a um mentiroso. Contudo, sire, concedei-nos um dom." "De boa vontade — disse o rei —, uma vez que a minha mulher e a minha filha se unem para mo pedir!" "Prometei-me que perdoareis ao matador do monstro os seus erros antigos, por maiores que sejam, e que lhe concedereis a vossa paz." O rei não se apressou a responder, pois tinha por costume refletir longamente antes de se decidir, mas acabou por dizer: "Já que assim o quereis, outorgo-vos esse dom." Isolda ajoelhou-se a seus pés e pediu: "Pai, dai-me o beijo da paz e do perdão, em sinal de que o dareis igualmente a esse homem!" E o rei fez o que a filha pedia. Ficou combinado que a corte do rei se reuniria no dia seguinte de manhã para escutar as afirmações contraditórias do senescal e do matador do monstro. Entretanto, desde que Tristão havia furtivamente abandonado o navio para combater o dragão, Gorvenal e os cem companheiros, privados de qualquer notícia do seu senhor, desolavam-se por terem-no perdido e procuravam em vão saber onde estava. Tristão enviou-lhes secretamente Périnis, o lacaio de Isolda: devia avisar Gorvenal e os outros cornualhenses para se dirigirem à assembléia dos barões da Irlanda, todos juntos, no dia seguinte, paramentados e aimados como convinha aos mensageiros de um rei rico.
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Lenda Medieval:Tristão e Isolda
RomansaTristão e Isolda é uma história lendária sobre o trágico amor entre o cavaleiro Tristão, originário da Cornualha, e a princesa irlandesa Isolda. De origem medieval, a lenda foi contada e recontada em muitas diferentes versões ao longo dos séculos.