XXIX A água atrevida

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ALGUNS meses após o casamento, Tristão e Isolda das mãos brancas dirigiramse, com Kaherdin, à peregrinação dos Sete Santos da Bretanha. Kaherdin cavalgava à direita da jovem, que montava à amazona, e Tristão à esquerda. Trocam mil ditos agradáveis, e o que dizem absorve-os de tal modo que deixam ir os cavalos ao sabor do seu capricho. Chegam acidentalmente a um pequeno curso de água quase seco, que atravessam num vau atulhado de pedras. Menos dóceis que o cavalo de Tristão, o de Kaherdin esquiva-se, o de Isolda empina-se; ela esporeia-o; mas, ao elevar o tacão para esporeá-lo de novo, é-lhe necessário abrir os joelhos e levantar o vestido, segurando-se com a mão direita ao arção da sela. O palafrém avança, deixa-se cair sobre as patas, mas escorrega numa pedra vacilante no meio do riacho. Pousando a pata na pedra mal segura, o cavalo faz jorrar muito alto um esguicho de água, que salta para debaixo do vestido de Isolda, entre os joelhos. A jovem, apanhada pelo frio da água na carne, solta um grito e desata a rir. Kaherdin, que a ouve, teme ter provocado a sua hilaridade com alguma palavra risível ou algum gesto desajeitado. Um pouco confuso, pergunta à irmã: "Ris com muita vontade, mas não sei por quê. Que fiz eu para ficares nesse estado de alegria?" "Irmão — responde —, não é de ti que rio e não te deves melindrar. Rio da agradável aventura que acaba de me acontecer, quando o cavalo fez saltar a água fria do vau para as minhas pernas. No momento em que ela esguichou para debaixo do meu vestido, estremeci e disse a meia-voz: "Água, és em verdade muito atrevida e foste mais longe entre as minhas pernas do que foi a mão de algum homem, nem mesmo a de Tristão!" Tristão fingiu não ter ouvido estas palavras e, dando às esporas, ganhou avanço sobre os companheiros. Quanto a Kaherdin, voltou-se para a irmã e perguntoulhe: "Que me contais? Tristão não foi mais atrevido contigo que a água deste riacho?" "Irmão, contei-te isso, mas falei demais e estou arrependida." Kaherdin, espantado, fez-lhe tantas perguntas que ela acabou por lhe dizer a verdade sobre a noite de núpcias. "Que significa isso? — interroga Kaherdin. — Não partilhais a mesma cama, Tristão e tu, há vários meses, desde que estais casados? Devo compreender que viveis afastados um do outro, como se fôsseis monge e monja? Se Tristão não brinca contigo aos jogos do amor, acho que te faz a pior das ofensas!" "Confesso-te, querido irmão, que Tristão nunca me tocou: por vezes, antes de adormecer, ainda me dá um beijo." "Por Deus, minha irmã, Tristão enganou-nos e decepcionou-nos gravemente, a ti e a toda a família. Se te desdenha, tão pura e tão franca, é de certeza porque ama outra mulher. Ah! Se o tivesse sabido mais cedo, nunca teria transposto a soleira do teu quarto!" "Irmão, não o deves condenar sem primeiro o ouvir: Tristão é leal e justo e tem, sem dúvida, razões para agir assim. Talvez te as dissesse se o interrogasses?" Kaherdin levou o cavalo até Tristão, que se afastara um pouco, perdido em devaneios. Mas quando chegou à sua altura, e lhe ia falar, ficou tão embaraçado que lhe faltaram as palavras para exprimir-se. Sentia uma viva contrariedade e um alanceador cuidado, pois supunha que o cunhado desprezara a irmã porque não queria ter um herdeiro descendente da linhagem do duque Hoël. Kaherdin continuou a cavalgar ao lado de Tristão, o rosto sombrio e o ar encolerizado, sem lhe dirigir palavra nem responder às perguntas do amigo. Tristão afligia-se por vê-lo de tão mau humor, ele que se mostrava habitualmente um companheiro tão alegre!
Terminada a peregrinação, quando voltaram para o castelo de Karhaix, Tristão chamou-o de parte e perguntou-lhe: "Amigo, por que evitas qualquer conversa comigo? Em que é que te desagradei? Não é próprio de um gentil-homem zangar-se com o melhor amigo sem lhe dar uma explicação." Kaherdin, dominando o furor, resolveu-se finalmente a exprimir-lhe com franqueza os agravos que tinha contra ele: "Não sei por que finges, Tristão, não saber o que te censuro; todavia, não ignoras que tenho o direito de te odiar. Nenhum homem da minha linhagem agiria de outro modo no meu lugar, e quando souberem o que eu sei, detestar-te-ão como eu. Mediste o alcance da afronta que nos fizeste? Casaste com a minha irmã em núpcias legítimas, de teu pleno agrado e de tua livre vontade, e no entanto, vários meses decorreram sem que tenhas consumado essa união. É claro que desdenhas unir-te a ela porque desprezas a nossa família: não queres ter um herdeiro de minha irmã. Declaro-te francamente: se não tivesses sido meu companheiro de armas e meu amigo, ter-te-ia feito pagar caro essa injúria. Eis a minha última palavra: se não reparas a tua falta e não tratas doravante a minha irmã como tua verdadeira mulher, lanço-te o meu desafio, pois tal ultraje só se lava com o sangue!" Tristão respondeu-lhe: "Irmão, infelizmente, os agravos que tens contra mim são demasiado reais. Compreendoos e reconheço-lhes o fundamento. Dizes verdade: vim para o meio de vós para vossa infelicidade. Se o mal secreto que atormenta o meu coração não me tivesse alterado a razão e perturbado o bom senso, nunca teria contraído esse casamento. Quando te tiver revelado a minha miséria, talvez o teu furor se acalme. Fica, pois, sabendo que amo com ardente amor outra Isolda, a mais bela de todas as mulheres. Durante anos, viveu comigo e conhecemos a felicidade dos amantes. Quando o infortúnio da minha vida obrigou-me a deixá-la, prometi guardar sempre a sua recordação e ficar-lhe fiel, mas não contara com o horrível tormento dos ciúmes que tortura o meu coração. Desde que a restituí ao marido, persuadi-me a mim mesmo, no meu delírio, que ela me votara ao esquecimento e que encontrava a alegria e o prazer junto de outro. Insensato! Cedi à ilusão de me vingar procurando, também eu, a alegria e o prazer junto de outra mulher, e é por isso que, de boa-fé e sem pensar em mal, casei com a tua irmã. Ai de mim! Desde a noite de núpcias que senti toda a extensão do meu erro: sei agora que nunca me será possível unir-me carnalmente a outra mulher que não seja aquela Isolda cuja existência acabo de te revelar." "Que grande piada me contas! — exclamou Kaherdin. — As tuas palavras são engenhosas e sabes encontrar belos pretextos para desculpar a tua falta. Julgas-me suficientemente ingênuo para dar crédito a tais fábulas? A longínqua Isolda de quem falas, que é senão uma quimera que forjaste a contento para acalmar a minha cólera?" "Enganas-te, amigo; é uma mulher de carne e osso. Vive em Tintagel, no reino da Cornualha, e o marido, a quem a entre¬guei, é o célebre rei Marcos, cuja fama chegou, desde há muito tempo, até aqui. Já sabes que sou filho do rei Rivalino de Leônis; pois fica sabendo agora que o rei Marcos é meu tio, irmão de minha mãe, e que o único objeto do meu amor é Isolda, a loura, filha de Gormond, rei da Irlanda, e mulher do rei Marcos. Ousas ainda afirmar que são quimeras e vãs ilusões de um espírito doente?"
Kaherdin mergulhou com estas revelações num estupor tão profundo que ficou muito tempo estupefato sem saber que responder. Então Tristão retomou a palavra e contou-lhe pormenorizadamente todo o mistério da sua vida. Disse-lhe como fora à Irlanda pedir em casamento, em nome do rei Marcos, a Isolda dos cabelos de ouro; como no mar bebera, sem saber, e partilhara com Isolda o filtro de amor que a rainha da Irlanda destinara ao rei Marcos para a noite de núpcias; como, durante três anos, Isolda e ele estiveram ligados um ao outro pela força invencível da bebida mágica. Narrou as ciladas e os ardis do anão corcunda, a traição e as denúncias dos barões traidores, a rainha levada à pira e entregue ao bando de leprosos, a vida amarga e dura dos amantes na floresta selvagem, e como restituíra Isolda ao rei Marcos após o fim do sortilégio e como casara com Isolda das mãos brancas para tentar esquecer aquela que permanecia para ele o verdadeiro e único amor. Acrescentou: "Se a tua irmã, amigo, casou comigo para sua infelicidade, acredita que sofro duplamente: por ela e por mim, que não a quis de modo algum ofender." Kaherdin ficou impressionado com o acento de sinceridade de Tristão e compreendeu que dizia a verdade; teve piedade dele e, mudando de tom, falou-lhe menos amargamente: "Tristão — disse —, há um ins¬tante queria matar-te. Sinto agora que o meu furor se acalma e que a minha amizade revive. Seguramente que, se estás ligado para sempre a outra mulher por um amor tão poderoso, a minha irmã não pode pensar em conquistar-te, pois qualquer partilha te seria odiosa. Se eu pudesse verificar com os meus próprios olhos que a rainha da Cornualha te ama com um amor sem par e que a sua beleza não tem igual, perdoar-te-ia, por mais que me custas¬se, o mal feito a minha irmã." "Só peço que mo deixes provar-te — continuou Tristão. — Queres acompanhar-me à Cornualha? Aí habita, no grande palácio do rei Marcos, a loura Isolda, o meu único amor. Quando a vires, julgar-me-ás."
Alguns dias mais tarde, Tristão e Kaherdin, reconciliados, confiaram ao duque Hoël e a sua filha Isolda que haviam feito o voto de ir a Inglaterra visitar os mosteiros onde se veneravam os túmulos dos santos de outrora. Pegaram no bordão e no alforje de peregrinos e só levaram com eles, com as mesmas vestes, Gorvenal e o escudeiro de Kaherdin. Os quatro homens alcançaram a pé a beiramar e arranjaram lugar numa nau que os levou à Grã-Bretanha.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora