XI Brangia entregue aos servos

22 1 0
                                    


ISOLDA é rainha e parece viver em alegria: tem a ternura do rei Marcos, os barões honram-na e o povo acarinha-a. Passa o dia no quarto das mulheres, ricamente pintado e juncado de flores; tem jóias preciosas, tecidos de púrpura e tapetes vindos da Tessália. E, acima de tudo, Isolda tem os seus ardentes e belos amores e Tristão ao pé de si quando quer, de dia e de noite, pois, como exigia o costume dos senhores daquele tempo, ele dorme no quarto do rei, entre os íntimos e os fiéis. Vários meses decorreram sem que ninguém desconfiasse dos amores da rainha: só Brangia e Gorvenal conheciam o segredo. Tristão sabia que podia contar com a discrição sem falha do seu fiel escudeiro. Isolda estava menos segura do silêncio de Brangia: acontecia-lhe temer que no decorrer de uma zanga a criada deixasse escapar palavras imprudentes e despertasse suspeitas ao rei Marcos ou ao seu séquito. Brangia sabia o seu segredo, Brangia tinha-a à sua mercê. Assim, o medo enlouquece a rainha, e eis que uma idéia monstruosa germina no seu espírito, aí se instala e não mais a deixa: "Que Bran¬gia desapareça e nada mais terei a temer!"
Um dia em que o rei Marcos e Tristão caçavam longe, Isolda mandou chamar dois servos florestais do rei. Prometeu, se a ser¬vissem docilmente, libertá-los e dar-lhes tal peso de ouro que poderiam viver daí em diante sem preocupações. Tentados, declararam-se prontos a fazer o que a rainha ordenasse. "Eis o que espero de vós — disse-lhes ela. — Tenho aqui uma criada que cometeu uma falta e merece castigo. Levai-a para a floresta e trespassai-a com os vossos punhais, depois disso, cortai-lhe a língua e trazei-ma em sinal certo da sua morte. Podeis estar seguros da minha generosidade; recebereis, além da liberdade, pelo menos sessenta soldos de ouro." Tal é o medo de Isolda de perder o seu amor que se torna cruel e sem piedade. Em seguida, finge estar doente e ordena a Brangia que vá procurar, para aliviar-lhe o mal, ervas salutares à floresta; dá-lhe os dois servos para a guiarem e protegerem de qualquer perigo.
Brangia foi, portanto, com os servos, e caminharam tanto que chegaram às profundezas do bosque. Um deles avançava à sua frente, o outro a seguia. Subitamente, aquele que ia à frente brandiu o punhal para atingi-la. Brangia, não podendo avançar nem recuar, começou a tremer. Gritou tão alto quanto pôde, juntou as mãos e conjurou o servo a dizer-lhe por que crime, por qual delito ia ser morta. O servo respondeu: "Em verdade ignoro-o, e a ti compete dizer-mo. Mal mo digas, mato-te. Que fizeste, pois, à rainha Isolda para que ela te tenha destinado tal morte?" Brangia respondeu: "Em nome de Deus, deixai-me confiarvos uma coisa antes da minha morte, pois quero mandar uma mensagem à rainha Isolda. Depois de me massacrarem, suplico-vos, declarai-lhe que nunca cometi nenhuma má ação em relação a ela, exceto uma única: quando partimos da Irlanda, a rainha sua mãe deu-nos a cada uma, para a nossa noite de núpcias, uma camisa, branca como a neve. Isolda usou a sua desde o dia da partida. Eu, que não passava de uma pobre rapariga, comprada ainda criança a piratas noruegueses, conservei a minha o melhor que pude. Isolda, por causa do grande calor, só trazia sobre a camisa uma túnica, de sorte que a rasgou inadvertidamente. No momento de desembarcar em Tintagel para casar com o rei Marcos, suplicou-me que lhe emprestasse a minha camisa para entrar no leito do rei, pois a sua já não estava tão branca nem tão intacta como convinha. Confesso que me custou aceder ao seu pedido, pois, por mais pobre que seja, gostaria de conservá-la para mim própria. É por isso que, antes de ceder, me fiz suplicar: essa breve hesitação é a única coisa que Isolda me pode censurar. Em minha alma e consciência sei que não cometi mais nenhuma falta contra ela. Saudai-a, pois, em nome de Deus e no meu, e dizei-lhe que lhe agradeço todo o bem e toda a honra que me fez desde a minha infância até este dia. Que Deus, na sua bondade, a guarde, proteja o seu corpo e a sua vida e que a minha morte lhe seja perdoada. Recomendo a minha alma a Deus. Quanto ao meu corpo, está à tua discrição: podes matar-me agora!"
Os dois homens olharam um para o outro, comovidos com as lágrimas que corriam dos olhos da criada. Ambos estavam com remorsos e maldiziam o terem prometido cometer esse assassínio. Não podendo descobrir nada nela que parecesse merecer a morte, deliberaram e concordaram em que era necessário deixar-lhe a vida. Ataram, pois, a fiel Brangia a uma árvore, bastante acima do solo, para impedir que os lobos a alcançassem e devorassem; na sua compaixão e retidão, esperavam poder voltar mais tarde para libertarem-na. Então, encontraram nas moitas uma lebre que caíra numa armadilha; mataram-na e cortaram-lhe a língua para a levarem à rainha.
Quando Isolda os viu de volta, perguntou-lhes imediatamente com ansiedade: "Falou antes de morrer?" "Sim, rainha, falou. Disse que estáveis irritada contra ela pela única ofensa que vos fez. Rasgasteis no mar uma camisa branca como neve que trouxestes da Irlanda, e ela hesitou em emprestar-vos a sua para a vossa noite de núpcias. Foi este, dizia ela, o seu único crime." "Não falou mais?" "Não, rainha, agradeceu-vos todos os bens recebidos de vós desde a infância, pediu a Deus que protegesse o vosso corpo e a vossa vida. Manda-vos saudações e amor. Rainha, eis a sua língua, que vos trazemos." Isolda entrou então em violenta cólera: "Assassinos, quem vos disse para a matardes? Devolvei-me Brangia, a minha querida serva! Não sabíeis que era a minha única amiga?" "Rainha — respondeu um dos servos —, diz-se justamente que a mulher muda em pouco tempo. Matamo-la porque vós no-lo ordenastes." "Miseráveis! Não vistes que falava sob o efeito da cólera? Não devíeis refletir longamente e adiar para mais tarde? Ai de mim!, era a minha querida companheira, a doce, a fiel, a bela. Quero vingar em vós a sua morte. Mandarei esquartejar-vos pelos cavalos e queimar os vossos membros numa pira se não ma devolveis sã e salva e tal como vo-la confiei!" Um dos servos respondeu: "Palavra de honra, rainha, mudais facilmente de pensamento! Nem há duas horas, ordenáveis-nos que a matássemos, e agora quereis perder-nos por amor dela! Para dizer a verdade, senhora, a vossa serva ainda está viva, pois não tivemos coragem de assassinar essa inocente com medo de incorrer nos castigos de Deus! Com a vossa permissão, devolvê-la-emos em breve, sã e salva." A rainha permitiu que um dos servos fosse buscar Brangia à floresta e mandou guardar o outro, a fim de se vingar nele se o companheiro não lhe trouxesse a moça.
Quando Brangia reapareceu no palácio com o florestal que aca¬bava de desamarrá-la da árvore, ajoelhou-se aos pés da rainha, pedindo-lhe que perdoasse os seus erros; mas esta também caíra de joelhos diante dela e ambas ficaram longamente abraçadas. Nunca mais, desde esse instante, a rainha Isolda concebeu a menor dúvida sobre a fidelidade da sua querida Brangia.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora