DE REGRESSO à Pequena Bretanha, Tristão vivia na dor e na angústia, pois não via mais nenhum modo de ir ter com Isolda, a loura, a Tintagel e não podia sentir nenhuma alegria verdadeira separado dela. No castelo do duque Hoël, ficava junto de Isolda das mãos brancas, que todos consideravam sua mulher, mas só era sua esposa de nome, pois nunca teve com ela nenhuma das intimidades que convém a um marido. O duque Hoël jamais concebeu a menor suspeita do estranho comportamento do genro, pois a filha era demasiado reservada para revelar-lhe a sua existência íntima e os seus dissabores conjugais. Kaherdin continuava a ser o único a conhecer o triste estado da irmã desde que esta lho revelara, dirigindo-se à água atrevida, quando cavalgavam juntos na passagem de um vau. O furor que sentira primeiro acalmara desde que Tristão lhe confidenciara o drama da sua vida e fizera com ele a viagem até à Cornualha: perante o espetáculo da radiosa beleza da loura Isolda, compreendera a razão por que o companheiro não pudera nem poderia nunca amar carnalmente outra mulher. Mais ainda, a amizade dos jovens tornava-se de dia para dia mais íntima e mais confiante.
Tristão tinha por costume errar na floresta bretã sob pretexto de perseguir a caça, mas, na realidade, para aí encontrar a solidão propícia aos devaneios e aos pensamentos amorosos que o levavam sempre a Isolda dos cabelos de ouro. Foi no decurso dessas longas caminhadas que lhe acorreu a idéia de construir, nas profundezas dos bosques, um refúgio só dele conhecido para onde teria toda a ocasião de se retirar para pensar na amada. Prometeu a si próprio, já que não a podia ver em carne e osso, esculpir a sua estátua com tal parecença que lhe daria a ilusão da sua presença. Um feliz acaso não tardou a fazê-lo descobrir o sítio que, pelo seu aspecto selvagem e inacessível, melhor convinha ao seu projeto. Um dia em que o duque Hoël caçava com Tristão na floresta, chegaram a um rio cujo leito largo e profundo os obrigou a parar. O duque disse ao genro: "Este rio marca o limite do ducado da Bretanha: não se estende mais longe. A corrente é tão violenta e impetuosa que é impossível a um peão ou a um cavaleiro passar de uma margem à outra, a não ser que conheça o traçado de um vau muito estreito ao qual nada assinala a existência; nenhum bretão lhe conhece hoje a situação. Em redor desse vau desenrolaram-se recentemente violentos combates em que muitos guerreiros caíram de ambos os lados e as suas armas ficaram no leito do rio. A margem oposta pertence a um temível gigante chamado Beliagog, que várias vezes me atacou e mais de uma vez pilhou e devastou os meus domínios. Só com grande custo consegui repeli-lo e concluí com ele um tratado nos termos do qual este rio marcaria para sempre a fronteira dos nossos dois territórios: ele comprometeu-se a nunca mais invadir o meu ducado e eu prometi em troca nunca transpor este vau para ir à sua terra. Ora, eu quero observar esse tratado o mais que puder, pois, se o romper, ele tem o direito de pôr os meus domínios a ferro e fogo e de aí causar o maior mal que puder. Se encontrar homens meus no seu território, tem o direito de matá-los. Se animais ou cães nossos transpuserem este curso de água, somos obrigados a comprá-los, sem que ninguém os possa chamar e recuperar. Todos os meus barões juraram este acordo. Também a ti, Tristão, proíbo de passares este rio, pois seria para tua vergonha e morte." Tristão respondeu: "Deus sabe, bom senhor, como não desejo nada avançar até lá abaixo. Que faria aí? Esse tal gigante bem pode guardar a sua terra em paz; não quero ter com ele nenhuma contenda. Não me faltam florestas onde caçar!"
Todavia, cravou demoradamente os olhos na floresta que via além do vau proibido: era feita de belas árvores, altas, direitas e robustas e das mais diversas espécies. De um lado, era limitada pelo mar e do outro pelo rio que ninguém podia transpor, de modo que formava verdadeiramente uma ilha. Entrementes, o duque voltou rédeas e pôs fim às reflexões de Tristão, iludindo as suas perguntas e arrastando-o atrás de si pelo caminho de regresso.
Durante toda a noite que se seguiu, Tristão pensou na bela floresta solitária e nas suas grandes árvores; projetava construir aí uma nobre habitação, que só ele conhecesse, dedicada à lembrança e à imagem de Isolda, a loura. Também meditava no gigante Beliagog e desejava encontrá-lo na esperança de se medir com ele e de realizar uma nova proeza.
Alguns dias mais tarde, partiu sem nada dizer, com o corcel, as armas de guerra e a trompa e avançou até ao rio que marcava o termo e o limite das terras de Hoël e do gigante. O leito, muito profundo, era ladeado por duas altas ribas de areia. Tristão procurou o vau, mas, não conhecendo de todo o local, lançou o corcel pela parte mais profunda da corrente. A água cobriu até acima das cabeças cavalo e cavaleiro; Tristão afundou-se tão rapidamente que julgou não sair vivo daquela. Todavia, esforçou-se tanto e tão bem que acabou por ganhar pé na outra margem. Tirou ao cavalo o freio, as rédeas e a sela para escorrer a água, deixou o animal repousar, pôs as roupas a secar e em seguida tornou a montar e embrenhou-se na floresta. Após ter errado durante algum tempo, como não encontrasse ninguém, pegou na trompa e arrancou-lhe um som tão forte e prolongado que o gigante o ouviu.
Beliagog acorreu imediatamente, armado com uma maça de ébano. Viu Tristão no corcel e perguntou com cólera: "Quem és tu, que ousas vir armado às minhas terras? Donde és? Onde queres ir? Que procuras aqui na minha floresta?" O bravo respondeu tranqüilamente: "Chamam-me Tristão e sou genro do duque da Bretanha. Via esta bela floresta e pensei que serviria para abrigar uma casa que quero mandar construir, pois vejo aqui as mais raras e belas espécies de árvores: quero abater as mais belas no número de quarenta e oito dentro de duas semanas." Estas palavras tiveram o poder de irritar o gigante, que respondeu: "Tão verdade como Deus me proteja, se não fosse o fato de viver em paz e amizade com o duque, abater-te-ia com um golpe da maça! Deixa quanto antes esta floresta, feliz por eu te deixar partir ascio e executar tantas esculturas e estátuas. Tristão apressou tanto os carpinteiros, os fazedores de imagens, os pintores e os ourives que logo a sua tarefa foi terminada. Então, permitiu-lhes irem-se embora, mas não sem os ter feito jurar que guardariam silêncio sobre tudo o que haviam visto; depois acompanhou-os até terem deixado a ilha, de regresso a casa. Junto de si não ficou outro companheiro além de Beliagog. Ambos levaram para o interior do palácio subterrâneo as estátuas e as esculturas executadas pelos artífices e dispuseram-nas segundo o plano previsto por Tristão. Cada uma estava pintada e dourada com a mais maravilhosa habilidade. Na primeira sala, Tristão colocou a figura do Morholt estendido morto no seu barco. Diante dele, doze donzéis, esculpidos em madeira pintada e marfim, e outras tantas donzelas, vestidas de seda e com ornatos bordados, bailavam e dançavam a carola: representavam a juventude da Cornualha celebrando alegremente a vitória de Tristão sobre o Morholt. Mais atrás, via-se o dragão da Irlanda que se erguia sobre a cauda, a boca aberta e as garras de fora.
A segunda sala estava ainda mais ricamente ornada do que a primeira. O centro era ocupado por uma imagem de Isolda, a loura, de tamanho natural: as proporções e as cores, o rosto, o aspecto e a estatura estavam reproduzidos com tanta arte que, ao vê-la, ninguém poderia duvidar que a vida não lhe corresse no corpo. Dos seus lábios, por meio de um mecanismo engenhoso, escapava-se um hálito tão doce que o seu perfume enchia a sala. Estava tão magnificamente vestida como convinha a uma rainha. Trazia uma larga sobreveste de escarlate bordado, apertada na cintura por um cinto de placas de prata do qual pendia uma escarcela. A cabeça, donde caíam duas longas tranças louras, estava ornada com um círculo de ouro onde se engastavam pedras de todas as cores; um rico colar enfeitava-lhe a garganta, que parecia levantar-se e respirar. Na mão direita segurava um cetro terminado nas flores mais delicadamente trabalhadas. A mão esquerda, adornada com um anel de jaspe verde, desenrolava uma tira onde se liam estas palavras: "Tristão, pega neste anel e guarda-o por amor de mim, a fim de te recordares as nossas alegrias e as nossas dores." A figura do malvado anão Frocin, moldada em latão, estava colocada sob os seus pés à laia de escabelo. Isolda mantinha-se em pé sobre o peito da pitorra disforme, que parecia chorar. Em face da rainha, encostada a um pilar, encontrava-se a sua criada Brangia, tendo aos pés o cão Husdent, que havia acompanhado os fugitivos na floresta de Morois e que a rainha conservava junto de si como recordação do amigo; Tristão fizera empenho em esculpir ele próprio na madeira a imagem do fiel animal. A estátua da serva era um pouco menor que o natural e menor que a da senhora; tão bela como a própria Brangia e paramentada com os mais belos adornos, segurava na mão um vaso coberto com uma tampa, que oferecia a Isolda com um rosto sorridente. À volta do vaso estavam inscritas estas palavras, tal como haviam sido outrora pronunciadas no navio: "Rainha Isolda, tomai esta bebida, que foi preparada na Irlanda para o rei Marcos."
No vestíbulo que precedia a primeira sala, um pouco atrás da porta de entrada, Tristão ergueu uma estátua maior que o tamanho natural: a do gigante Beliagog. Apoiava-se na única perna que lhe restava e brandia com as duas mãos a maça de ébano por cima do ombro, como que para proteger a imagem da rainha. Estava coberto com uma grande pele de bode; esta não descia muito baixo, de modo que ele estava nu a partir do umbigo. Arreganhava os dentes e lançava olhares furiosos, como se quisesse matar todos aqueles que tentassem entrar na sala. Do outro lado da porta estava postado um grande leão moldado em cobre. Erguia-se nas quatro patas e enrolava fortemente a cauda à volta de uma imagem feita à semelhança de Kariado, que havia desonrado e caluniado Tristão junto a Marcos.
Quando todas as obras ficaram prontas, Tristão fechou a porta, guardou as chaves e ordenou a Beliagog, assim como ao seu lacaio e ao seu servo, que montassem tão boa guarda que ninguém se pudesse aproximar da sala subterrânea. O gigante conservou os seus outros tesouros e Tristão regozijou-se grandemente por ter sido bem-sucedido naquele empreendimento. Regressou como habitualmente ao castelo do duque Hoël, em Karhaix: comia, bebia e dormia junto da mulher, Isolda das mãos brancas, e conversava amigavelmente com os companheiros. A seguir, continuou a visitar freqüentemente a sala das imagens, mas ia por caminhos escusos, a fim de não ser surpreendido por ninguém.
De certa vez revia a imagem de Isolda, tomava-a nos braços e beijava-a como se ela estivesse viva e lembrava-lhe os seus amores, as suas dores e os tormentos. Quando estava alegre, sentava-se num escabelo de carvalho, no meio da sala, e cantava para agradar à amada um dos lais que compusera em sua honra. Mas quando a tristeza se apoderava da sua alma, testemunhava-lhe desagrado e cólera, pois ainda lhe acontecia imaginar nos seus devaneios que ela o votava ao esquecimento e que não pudera impedir-se de amar outro na sua ausência. Desconfiava, sobretudo, do belo Kariado, cuja assiduidade ao pé da rainha conhecia, e esta preocupação levava-o a conceber falsas suspeitas. Quando experimentava tais sentimentos, censurava Isolda e às vezes até se recusava a fitá-la, a sorrir-lhe e a falar-lhe. Nesses momentos, era a Brangia que se dirigia: "Bela, venho apresentar queixa junto de vós da infidelidade de Isolda, a minha amada." Depois, pouco a pouco, a segurança abandonava-o, o seu olhar caía sobre a mão de Isolda e sobre o anel de jaspe verde. Revia a expressão do seu rosto no momento da partida do amigo e recordava-se do pacto concluído na hora da separação. Então pedia-lhe perdão pela loucura que o assaltara durante uma hora, e media até que ponto as suas falsas suspeitas o haviam desvairado. Era por isso que havia feito aquela imagem: não tendo mais ninguém a quem revelar a sua vontade ou o seu desejo, queria desvendar-lhe o seu coração, os seus pensamentos, o seu louco erro, a sua dor e a sua alegria de amor.
Assim vive Tristão, a quem a paixão possui. Por vezes foge à imagem, por vezes volta para ela; por vezes tem para ela olhares radiosos e por vezes mostra-lhe um rosto de desgosto.
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Lenda Medieval:Tristão e Isolda
RomanceTristão e Isolda é uma história lendária sobre o trágico amor entre o cavaleiro Tristão, originário da Cornualha, e a princesa irlandesa Isolda. De origem medieval, a lenda foi contada e recontada em muitas diferentes versões ao longo dos séculos.