XXXV A última ferida

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A SALA das imagens estava acabada há vários meses quando Kaherdin confidenciou a Tristão uma aventura amorosa em que se metera. Não longe de Karhaix, numa fortaleza isolada no meio dos bosques e cercada de água por todos os lados, vivia um anão rico e poderoso chamado Bedalis, marido ciumento de uma jovem mulher de grande beleza que respondia pelo nome de Gargeolain. Kaherdin avistou um dia a bela à janela da sua torre e ficou tão apaixonado que tentou várias vezes visitá-la: todas as suas tentativas só tiveram como resultado excitar ainda mais os ciúmes do marido e tornar ainda mais apertado o cativeiro da mulher. Todavia Gargeolain tirou com cera o molde da fechadura da porta flanqueada por duas torres, que se erguia à entrada da ponte levadiça e dava acesso à cadeia, graças à qual se podia abaixar ou subir a ponte. Fê-la chegar às mãos de Kaherdin. O apaixonado encarregou um ferreiro de lhe forjar uma chave segundo esse molde; quando ficou pronta, pediu a Tristão que o acompanhasse na sua temerária aventura.
Sem outras armas além das espadas e só seguidos pelos escudeiros, chegaram à entrada da ponte levadiça. Bedalis partira para a caça e todos os servos o haviam acompanhado. Kaherdin abriu a porta, baixou a ponte levadiça e foi encontrar-se com Gargeolain no quarto. Tristão, enquanto aguardava o retorno do amigo, ficou com Gorvenal e o outro escudeiro numa sala vizinha da entrada e estenderam-se no chão coberto de juncos recentemente cortados. Kaherdin demorou tanto tempo junto da amante que deu ao marido ensejo de regressar. Quando Tristão ouviu o barulho dos caçadores que se aproximavam, chamou Kaherdin a toda pressa e os quatro companheiros escaparam mesmo ao combate com Bedalis.
Ao regressar ao castelo, o anão espantou-se por encontrar a porta aberta e a ponte levadiça baixada; as suas suspeitas aumentaram quando viu flutuar na água dos fossos uma canoa de rosas vermelhas que Kaherdin trazia na cabeça e que, na fuga precipitada, deixara cair. Armou-se e, à cabeça de um bando numeroso, lançou-se no encalço dos fugitivos. Cercados por adversários muito superiores em número, os quatro homens defenderam-se com grande coragem e mataram vários dos assaltantes. Gorvenal desembainhara a espada e resistia valentemente, mas sucumbiu sob o número e caiu, trespassado de um lado ao outro. Tristão vinha em seu auxílio quando Bedalis o atingiu no flanco com um terrível golpe da sua lança envenenada. O bravo vacilou sob o choque, mas conseguiu manter-se na sela. Kaherdin e o escudeiro realizaram prodígios de valor para cobrir a sua retirada até ao castelo de Karhaix, onde chegou no limite das forças.
Os servos precipitaram-se; desceram-no do cavalo com mil precauções, mas ele não conseguiu agüentar-se em pé e caiu sem sentidos no pavimento. Transportaram-no para a habitação onde residia habitualmente junto da mulher. O primeiro cuidado de Isolda das mãos brancas foi convocar médicos para pensarem a chaga e tratarem dele. Apresentou-se um grande número, mas nenhum deles conseguiu descobrir a natureza do veneno: todos os seus cuidados foram inúteis. A despeito de todos os emplastros, o mal piorava cada vez mais, a tez do ferido alterava-se, as forças esgotavam-se, o corpo estava emagrecido e descarnado. Tristão dirigiu-se então a Kaherdin: "Escuta — disse —, querido companheiro; estou aqui em país estrangeiro e não tenho nem parente nem homem da minha raça para me socorrer na minha necessidade. Desde que perdi o meu querido Gorvenal, só te tenho a ti como amigo: és o único ser no qual me posso apoiar. Fica sabendo que mais ninguém me pode curar além de Isolda, a loura. Só ela, se o quiser, pode realizar esse milagre. Contanto que seja informada do estado em que me encontro, estou certo de que não se poupará a nada para me salvar. É por isso que, em nome da nossa amizade, te suplico que a vás procurar no castelo de Tintagel e lhe peças que venha sem demora contigo paia me salvar a vida." Kaherdin ficou comovido com as lamentações dc Tristão e, para consolá-lo, disse-lhe doces palavras: "Não chores mais, Tristão, farei tudo o que quiseres. Se fosse preciso, afrontaria a morte para te devolver a saúde. Dizme somente a mensagem que devo levar à rainha Isolda e preparar-me-ei sem demora para essa viagem." "Escuta-me, pois — respondeu Tristão. — Toma este anel de jaspe verde que me confiou Isolda, a loura, para que seja entre nós um sinal de reconhecimento. Quando chegares à corte, mal lhe apresentes este anel, ela reconhecer-te-á como meu mensageiro e achará maneira de falar-te comodamente sem que ninguém vos possa ouvir. Depois de a teres saudado da minha parte, diz-lhe que não há para mim nenhuma esperança de cura se ela não me vier tratar em pessoa. A menos que me reconforte com um beijo da sua boca, terei de ir desta para melhor com grande desgosto meu. Recorda-lhe que, por amor dela, me expulsaram e exilaram vergonhosamente em terra estrangeira: passei por tantas dores e lutei tanto que já só tenho um sopro de vida, muito débil. Desde que fui coagido a afastar-me dela, jamais, e tu sabê-lo, amei outra mulher: quanto mais se esforçaram por me separar dela, menos o conseguiram. Companheiro, esforça-te por conduzi-la até ao meu leito de dor; se não regressas depressa com ela, nunca mais me tornarás a ver. Toma também cuidado para que ninguém saiba nada disso além de nós os dois: apresentá-la-ás como uma hábil curandeira vinda de uma terra estrangeira para tratar do meu ferimento. Sobretudo, nada digas a tua irmã Isolda das mãos brancas, a fim de que ela não suspeite do meu amor por Isolda da Irlanda. Kaherdin respondeu: "Diz-me que navio devo tomar para essa viagem e que prazo me concedes para ir à Cornualha e voltar com a rainha." "Leva a bela nau com que te presenteou o teu nobre pai, o duque Hoël, e recruta a equipagem entre os melhores deste país. Não sei ao certo quanto tempo te será necessário para ir a Tintagel e voltar com a rainha: tudo dependerá dos ventos e do estado do mar. "Na minha opinião — observou Kaherdin —, não estarei de retorno, por mais diligências que faça, antes de uma quarentena de dias." "É possível — replicou Tristão. — Não sei se terei forças para agüentar tanto tempo sem ser socorrido, mas Deus sustentarme-á pela virtude da esperança. Além disso, para que enlanguesça menos tempo na incerteza da espera, peço-te, belo companheiro, que leves duas velas contigo: uma branca e outra preta. Se conseguires decidir Isolda a vir curar-me a chaga, iça a branca no retorno: assim, a alegria que experimentarei iniciará a minha cura antes mesmo de teres ancorado no porto. Se, por infelicidade, não trouxeres a minha terna amada, então desfralda a vela preta e eu cessarei de reter o que me poderá restar de vida. Vai! Nada mais tenho a dizer-te: que Deus te conduza na tua viagem e te traga são e salvo!" Kaherdin abraça Tristão e, muito dolorosamente, despede-se dele.
Ao primeiro vento favorável, Kaherdin faz-se ao mar, os marinheiros levantam as âncoras, içam o mastro e singram para o largo, levados por uma suave brisa. Durante vários dias cortam a toda a velocidade as vagas e as ondas, a todo o pano. Kaherdin mandou carregar debaixo da ponte tecidos de seda, louça de Tours, vinhos de Anjou e de Poitou, pássaros de Espanha: far-se-á passar por um mercador, a fim de dissimular o objetivo real da sua missão.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora