X A noite de núpcias do rei Marcos

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NO DIA SEGUINTE ao São João, os dois navios fizeram-se à vela e vogaram novamente para a Cornualha. Os amantes não tinham nenhuma dificuldade em se encontrarem de dia ou de noite, mas à sua alegria misturava-se a inquietação, pois temiam que o seu segredo fosse surpreendido. Se o rei Marcos viesse a descobrir a sua falta, não deixaria de infligir-lhes um castigo inexorável. "Quando o rei se aperceber de que já não sou virgem — dizia Isolda —, sofrerei a pena que as leis dos nossos povos reservam à mulher adúltera e que é a mesma de um traidor: serei queimada viva e as minhas cinzas dispersas aos quatro ventos." Tristão respondia-lhe: "E quando o rei Marcos se aperceber disso, considerarme-á seguramente o único culpado possível, uma vez que, ao receber-vos das mãos de vosso pai, tomei o compromisso de velar durante toda a viagem pela segurança da vossa pessoa e a integridade do vosso corpo! Posso, pois, bela amiga, temer tanto quanto vós a cólera de meu tio e, se tiverdes de perecer de funesta morte, pereceremos juntos."
No momento em que o seu coração era agitado por todos estes temores e por mil pensamentos contraditórios, Isolda lembrou-se de um ardil para esconder a sua falta. Teve a idéia de pedir a Brangia, que ainda era virgem, para tomar em segredo e em silêncio o seu lugar no leito do rei na noite de núpcias. Os amantes suplicaram-no a Brangia com tanta insistência que esta acabou por vencer a repugnância: resignou-se a executar o seu desejo. Isolda prometeu-lhe em troca belas recompensas e que viveria para sempre ao pé dela em grande honra. Brangia acrescentou: "É justo que vos obedeça e me submeta à vossa vontade, pois sou eu a causa da vossa falta e responsável pela morte que vos ameaça se a vossa ligação for descoberta. Disponde, pois, de mim como quiserdes."
De repente, soaram os gritos dos marinheiros: "Terra! Terra!" No horizonte, era visível a costa da Cornualha, e todos estavam felizes por chegar ao termo da viagem, salvo Isolda, que cada vez receava mais encontrar-se frente ao rei Marcos, e Tristão, pois, se fosse senhor do seu destino, vogaria sem fim pelas vagas com aquela que era doravante o seu encanto e alegria.
Quando os dois navios entraram no porto de Tintagel, Tristão enviou logo um mensageiro ao castelo do rei Marcos para anunciar-lhe que o sobrinho obtivera para ele a mão de Isolda, a loura, a bela dos cabelos de ouro, e que lha trazia. O rei alegrou-se muito com esta nova e veio, à frente de um brilhante cortejo, acolher a esposa ao porto. Tristão pegou-lhe na mão e levou-a diante do rei, que, a recebeu por sua vez, dizendo: "Bela, aceito-vos neste momento por minha mulher e companheira, como Tristão, meu sobrinho e mensageiro, vos recebeu em meu nome das mãos de vosso pai." Quando foi introduzida no salão do palácio, no meio de todos os vassalos, Marcos tomou a palavra: louvou as andorinhas que, num maravilhoso presságio, lhe haviam trazido o cabelo de ouro, louvou Tristão e os cem vassalos que, pelo mar aventuroso, tinham partido em busca da alegria dos seus olhos e do seu coração.
Alguns dias depois, em presença do clero e de todos os barões, celebrou os esponsais com a jovem Isolda. Quando chegou a noite, a noiva deixou a sala do festim em companhia de Brangia, a sua criada, e dirigiram-se, seguidas por Tristão, ao quarto do rei. Aí, Brangia, para cumprir a promessa, entrou, despida, no leito, no lugar de Isolda, e aguardou pacientemente a vinda do rei, enquanto Isolda se retirava. Então, Tristão voltou para a sala do festim, onde encontrou Marcos muito alegre e algo perturbado pelos vapores do vinho. Tendo-o conduzido até à entrada do quarto real, disse ao rei que era costume na Irlanda apagar todas as luzes no momento em que o marido se juntava à mulher no leito nupcial. "Esse costume é bom e belo — respondeu Marcos —, faça-se assim!" Tristão apressou-se a apagar todos os candelabros e acompanhou o rei até ao leito onde Brangia já repousava. Era da mesma idade e do mesmo tamanho de Isolda. O rei estendeu-se ao lado de li rangia, tomou-a nos braços, apertou-a, nua, contra o peito e amou-a.
Entretanto, Isolda esperava na sombra, à escuta, ansiosa e temerosa de que o ardil fosse descoberto. Ao fim de uma hora, ou pouco mais, o rei, aturdido pela bebida, adormeceu profundamente. Então, Brangia deslizou sorrateiramente para fora da cama e Isolda tomou o seu lugar com precaução, para não incomodar o sono do rei. Quando ele acordou, pelo meio da noite, perguntou se não serviam aos novos esposos uma taça de vinho para reconfortá-los, como era costume nesse tempo. Brangia, que previra este pedido, apressou-se a trazer uma taça onde havia deitado o que restava do vinho ervoso no frasco que a rainha da Irlanda lhe confiara. Marcos, sentado no leito, recebeu a taça das mãos de Brangia, bebeu metade e depois passou-a a Isolda para que esta, por sua vez, o
bebesse; mas ela, sem ser vista pelo marido, deitou fora a bebida que restava na taça. Desta vez, nem uma gota aflorou os seus lábios.
Quando Brangia se retirou, apagando as luzes de novo, imediatamente o filtro operou no rei. Um novo ardor aqueceu-lhe o coração, um arrepio percorreu-lhe os membros. Estendeu os braços para a Isolda e enlaçou-a. O rei não se apercebeu de que, perto do alvorecer, abraçava outra companheira que não era a que tivera nos braços nas primeiras horas da noite. Isolda, por seu lado, mostrou-se dócil ao prazer do rei. Como tinha jeito para fingir, respondeu às suas carícias; ele próprio prodigalizou-lhe tanta ternura que a rainha sentiu-se satisfeita. Distraíram-se com vários ditos agradáveis e divertidos; a noite acabou em alegria.
Em seguida, Isolda mostrou-se animada e feliz; o rei amava-a; ricos e pobres louvavam-na e honravam-na. Tantas vezes quanto podia, via em segredo Tristão, mas como estava constantemente colocada sob a sua guarda, ninguém, nos primeiros tempos do seu casamento, concebeu a mais ligeira dúvida.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora