O DUQUE Audret, persuadido do regresso de Tristão, mantinha espiões para saber o que se tramava no palácio. Soube assim que Brangia todas as noites ia encontrar-se com um desconhecido. Numa noite, Audret até quase o surpreendeu com a serva: era Kaherdin. Conseguiu escapar-se, mas Audret entreviu, na sombra, outro homem que saía dos aposentos da rainha; era Tristão, certamente. Resolveu apoderar-se dele. No dia seguinte, pôs-se à sua procura, acompanhado por uma pequena escolta. Por infelicidade, o acaso conduziu-o direto ao bosquezinho perto do castelo onde estavam escondidos Gorvenal e o escudeiro de Kaherdin com os cavalos e as armas dos senhores. Como os dois homens tinham a cabeça coberta com um elmo de viseira, Audret tomou-os por Tristão e pelo desconhecido que por pouco não surpreendera com Brangia. Mal viram Audret aproximar-se deles, os escudeiros puse¬ram-se em fuga e afastaram-se o mais depressa possível. Audret gritou-lhes com todas as forças: "A vós a vergonha, covardes! Escondeis-vos como poltrões!" Depois, dirigindo-se àquele que julgava ser Tristão: "Pára, Tristão! Esconjuro-te em nome do teu valor!" Os dois fugitivos nem se voltaram. Então Audret continuou: "Pára, Tristão! Esconjuro-te em nome de Isolda, a loura!" Renovou duas vezes esta adjuração em nome de Isolda, a loura. Em vão: os dois homens não diminuíram a velocidade e acabaram por desaparecer na curva de um caminho. Os homens do duque Audret só conseguiram apanhar um dos cavalos que os escudeiros levavam pelas rédeas e trouxeram-no para o castelo de Tintagel.
Mal encontrou a rainha, Audret disse-lhe: "Senhora, sei agora que Tristão regressou a este país. Avistei-o perto daqui, num bosque, em companhia de um desconhecido. Ambos se puseram em fuga por um velho caminho abandonado. Por três vezes o intimei a parar esconjurando-o em nome de Isolda, a loura, mas ele amedrontou-se e não ousou esperar por mim." "Sire Audret, falais mentira e loucura! Nunca me fareis crer que Tristão, esconjurado em meu nome por três vezes, não tenha parado e não tenha ousado fazer-vos frente!" "No entanto, foi ele quem eu vi! Até me apoderei de um dos cavalos: podeis avistá-lo, todo aparelhado, lá embaixo no pátio."
Com isto, Audret despediu-se da rainha, que deixou completamente desamparada. Começou a chorar e disse: "Infeliz, vivi demasiado, pois vi o dia em que Tristão me despreza e amaldiçoa. Outrora, esconjurado em meu nome, que inimigo não defrontaria? É ousado e valente: se fugiu diante de Audret e se se recusou a obedecer à tripla esconjuração que lhe era feita em meu nome, é porque a outra Isolda o possui e já não faz, na realidade, nenhum caso de mim! Todavia voltara e eu recebera-o com alegria. Ora, não lhe bastou trair-me, quis desonrar-me também! Não estava eu farta dos meus tormentos antigos? Que volte, pois, por sua vez amaldiçoado, para Isolda das mãos brancas!" A rainha chamou Périnis, o fiel, e repetiu-lhe as notícias que Audret lhe trouxera: "Amigo Périnis, procura Tristão na estrada abandonada que vai de Tintagel a Lancien.
Dir-lhe-ás que não o saúdo e que não seja tão audacioso que ouse doravante aproximar-se de mim, pois fá-lo-ei expulsar pelos sargentos e lacaios." Périnis põe-se imediatamente à procura de Tristão e de Kaherdin; quando os encontrou, transmitiu-lhes a mensagem da rainha. "Irmão — exclamou Tristão, espantado —, que me contas? Como teríamos fugido, Kaherdin e eu, perante o duque Audret, se não encontramos os nossos escudeiros no bosquezinho onde nos deviam esperar? Não tínhamos os cavalos. Procuramos em vão Gorvenal e o escudeiro de Kaherdin; ainda os procuramos."
Nesse mesmo momento, Gorvenal e o outro escudeiro desembocaram do velho caminho abandonado, seguidos por um único cavalo. Interrogado por Tristão, Gorvenal não pôs nenhuma dificuldade em confessar que haviam fugido: "Senhor, que outra coisa podíamos fazer para não cairmos nas mãos do duque Audret e da sua gente? Se me tivesse deixado reconhecer, o traidor teria descoberto logo o segredo do teu regresso à Cornualha." Então o bravo disse a Périnis: "Querido amigo, volta depressa para a tua senhora: diz-lhe que lhe mando saudações e amor, que não faltei à lealdade que lhe devo e que nunca fugi diante de ninguém nem ignorei uma esconjuração feita em seu nome. Pedelhe que me perdoe, uma vez que não falhei e que toda esta história é o resultado de um mal-entendido. E não deixes de voltar trazendo-me o seu perdão: aguardarei aqui o teu regresso."
Périnis contou à rainha o que vira e ouvira; esta recusou-se a acreditar: "Ah!, Périnis, eras o meu fiel servidor e o meu pai havia-te afeiçoado, ainda criança, à minha pessoa. Durante anos, nada houve que te censurar, mas eis que agora Tristão, o enganador, te conquistou com as suas mentiras! Também tu me traíste: vai-te!" O lacaio prosternou-se de joelhos diante dela, as mãos estendidas: "Senhora, dizeis-me palavras duras que me ofendem e afligem. Nunca senti tal dor em toda a minha vida! Mas pouco me importa por mim: se me aflijo, é por vós, senhora, que ultrajais injustamente o meu senhor Tristão, e vos mostrais iníqua com ele. Estou certo de que um dia, mas demasiado tarde, vos arrependereis." "Vai-te, não te acredito! Também tu, Périnis, o fiel, me atraiçoaste!" Tristão esperou muito tempo pelo perdão da rainha: Périnis não voltou.
De manhã, Tristão vestiu uma grande capa em farrapos e tingiu o rosto com suco de casca de noz e vermelhão, a fim de ficar com o aspecto de um doente carcomido e desfigurado pela lepra, como fizera quando da assembléia da Charneca Branca. Tomou entre as mãos o bastão de madeira venada que lhe dera a rainha e uma matraca. Penetrou assim nas ruas de Tintagel e, disfarçando a voz, começou a pedir esmola aos passantes. O seu único desejo e esperança eram avistar a rainha e fazer-se reconhecer por ela. Finalmente, ela saiu do castelo, acompanhada por Brangia e um grupo de lacaios e de sargentos. Quando meteu pela rua que levava à igreja, o falso leproso juntou-se ao grupo de lacaios fazendo tinir a matraca e suplicando com uma voz dolente: "Rainha, fazei-me algum bem, não sabeis a que ponto sofro e estou necessitado!" Isolda não se deixou iludir pela velha capa usada pela matraca: reconheceu Tristão pelo belo corpo, pela nobre estatura e pelo bastão de madeira venada que lhe havia oferecido. Mal o reconheceu, o seu corpo estremeceu todo, mas, ofendida no orgulho, não se dignou baixar o olhar para ele. O mendigo implorou de novo e metia dó ouvi-lo. Suplicava-lhe arrastando-se ao pé dela: "Rainha, não vos enfureçais se ouso aproximar-me de vós! Vede a minha miséria: tende piedade de mim!" Em vez de se comover, chama os lacaios e os sargentos: "Expulsai este vagabundo" — ordena-lhes. Os lacaios empurram-no e afastam-no batendo-lhe com os paus. Ele enfrenta-os ferozmente e exclama: "Rainha, tende piedade! Sofri tanto por vós!" Quando ouviu estas palavras, Isolda desatou a rir e entrou rapidamente na igreja. O mendigo calou-se e afastou-se.
Nesse mesmo dia, Tristão, depois de abandonar as vestes de leproso, despediu-se de Dinas de Lidan. Estava tão desanimado que parecia ter perdido o juízo. No dia seguinte, em companhia de Gorvenal, de Kaherdin e do seu escudeiro, todos vestidos de peregrinos, fez-se ao mar para regressar à Pequena Bretanha. Pobres amantes! A rainha não tardou a arrepender-se do seu orgulho e dureza. Recordando a sucessão dos acontecimentos, compreendeu finalmente que Périnis falara verdade. Tristão jamais fugira diante do duque Audret; jamais fora esconjurado em nome de Isolda, a loura; cometera um grave erro ao expulsá-lo. "Infeliz de mim! — exclamou. — Pequei contra o meu amor! Doravante odiarme-á e nunca mais o verei. Jamais saberá quão arrependida estou nem que penitência irei impor a mim mesma e oferecer-lhe como penhor dos meus remorsos." Desde esse dia, Isolda, a loura, passou a usar um cilício e fez o voto de trazê-lo contra a carne até que Tristão a perdoasse.
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Lenda Medieval:Tristão e Isolda
RomansaTristão e Isolda é uma história lendária sobre o trágico amor entre o cavaleiro Tristão, originário da Cornualha, e a princesa irlandesa Isolda. De origem medieval, a lenda foi contada e recontada em muitas diferentes versões ao longo dos séculos.