XXV O juramento ambíguo

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CHEGOU a data da assembléia em que Isolda, a loura, se devia justificar com o julgamento. Era um dia quente, para o fim do verão. Tristão, a seu pedido, fizera uma estranha vestimenta: uma cota de burel grosseiro que trazia sem camisa sobre a pele, um alforje e velhas botas de couro remendadas para cobrir-se, talhara uma ampla capa de lã castanha, enegrecida pelo fumo. Assim enfarpelado, parecia um verdadeiro leproso; por prudência, escondia sob a capa a espada, suspensa de uma corda que atara à volta da cintura. Gorvenal, que o acompanhara até aí, dera-lhe sábios conselhos: "Tristão, não sejas tolo por bravata. Observa bem os sinais que te fará a rainha e executa as suas ordens." "Se me ajudares, tudo irá bem; mas não devemos ir sem as armas, pois podemnos fazer falta. Levarás o meu cavalo arreado, com o escudo e a lança, e emboscar-te-ás numa moita, na proximidade do Mau Passo. Os dois reis estarão aí, rodeados pelos seus barões. Enquanto armam as tendas na pradaria, do outro lado do vau, dar-lhes-ei um famoso espetáculo!"
Gorvenal emboscou-se como Tristão lhe dissera. O falso leproso, de bordão ao pescoço, cálice de madeira na mão, veio sentar-se no cimo do outeiro que dominava os pântanos e o vau. Não era disforme, nem corcunda, mas estava tão bem caracterizado que toda a gente acreditava. Aos que passavam por ele dizia, lamentando-se: "Infeliz de mim, que não nasci para me tornar mendigo nem ter tal ofício. Mas, no estado em que estou, não tenho outro remédio." As pessoas, apiedadas, puxavam das bolsas e ele recebia humildemente as esmolas. Até aos pedintes, aos vagabundos que jaziam de costas nas valas das estradas, estendia o cálice. Uns davam-lhe, outros injuriavam-no, chamando-lhe vadio, devasso, e maltratavam-no. Ouvia e suportava tudo sem lhes responder, mas quando se tornavam demasiado ameaçadores, afastava-os com a muleta: magoou uma dúzia. Aos que lhe davam, dizia que ia beber à sua saúde, pois um fogo ardente lhe devorava o corpo. Ninguém desconfiou que não fosse verdadeiramente leproso.
Na pradaria, lacaios e escudeiros erguem os pavilhões de cores vivas e, por vias e caminhos, chegam os cavaleiros em bandos, apressando-se a atingir o pântano. Meu Deus, como o caminho é péssimo! Merece bem a designação de Mau Passo! Mal se afastam do pontilhão feito de tábuas postas sobre uma camada de lenha, os cavalos entram no lodo até ao flanco e os cavaleiros cobrem-se de lama. O leproso faz chacota do seu embaraço; grita-lhes: "Segurai as rédeas pelo nó e dai às esporas! Para a frente! Não há mais lodaçal!" E quando avançam, o pântano afunda-se sob eles. Então, vendo o cavaleiro estatelar-se na vasa, Tristão, radiante, toca a matraca e bate com o cálice no bordão. Artur aproximou-se do vau. Tristão vai ao seu encontro e implora: "Ó grande rei! Sou pobre e filho de pobre, doente, corcunda, desfigurado, leproso. Venho aqui para pedir esmola: não me mandes embora; ouvi tantas vezes falar da tua generosidade! Tens belas roupas de tecido cinzento e o pano de Remos é doce à tua pele branca. Vejo as tuas pernas estreitamente cingidas por calções de fio verde e os teus pés calçados de botas escarlates. Vê a minha roupa esburacada, vê a minha pele, como me coço e tenho frio, embora o corpo me arda. Rei, por Deus, dá-me as tuas polainas." O nobre rei apieda-se. Dois lacaios o descalçam; o leproso desce do cabeço para receber as polainas e volta depois a subir. Por sua vez, chega o rei Marcos, orgulhoso e bem trajado. O leproso quer ver se consegue qualquer coisa dele. Mais que nunca, agita a matraca e fala com ênfase. O rei pára, tira o capuz e só conserva o gorro na cabeça: "Toma, irmão, cobre o crânio e os ombros: com certeza que, com o mau tempo, deves sofrer muito." "Sire, obrigado, isto me resguardará do frio." E põe o capuz.
Com grande custo, Marcos atravessou o Mau Passo e juntou-se a Artur, que, na margem dependente do seu reino, diverte-se com os seus homens. Desde logo se informa de Isolda: "Vem com o senescal Dinas de Lidan, que se encarregou de escoltá-la" — respondeu Marcos. "Mas como irá atravessar o lameiro deste Mau Passo?" No mesmo instante, dois dos barões traidores, Denoalen e Gondoüne, chegam diante do vau. Avistam o leproso e perguntam-lhe por onde passaram os cavaleiros que menos se enlamearam. Tristão aponta com a muleta: "Vedes essa turfeira? E o melhor caminho; vi vários passarem por aí." Os traidores avançam e, de repente, enterram-se ao mesmo tempo no lodaçal até à sela dos cavalos. O leproso grita-lhes: "Ide, senhores. Segurai-vos bem aos arções e avançai: digovos que é o caminho, vi pas¬sar por ele muita gente hoje." Mas os outros não encontraram nem margem nem fundo. Para ver como sairiam dali, os dois reis e a sua gente aproximaram-se. Isolda, a bela, chega por sua vez, montada num palafrém branco. Vem vestida com uma túnica de seda clara e um longo casaco forrado de arminho; as suas tranças louras caem-lhe abaixo da cintura, presas na testa por um círculo de ouro. Com grande alegria, vê os invejosos na lama e o amado empoleirado no outeiro, vestido de mendigo; ri com vontade. E Tristão, radiante, bate com o cálice no bordão e agita a matraca. Todos os que aí se encontram riem também às gargalhadas. O leproso interpela então Denoalen: "Agarra no meu bastão, bom senhor, segura-o e puxa com força com as duas mãos!" Quando o traidor segura bem firme, Tristão deixa-o cair de costas e grita com voz de falsete: "Não consigo segurar-te! O mal entorpeceu-me as mãos, levou-me as forças." Há agora à vontade, à volta dos dois reis, cem barões que se divertem a observar os dois traidores chafurdando na lama. Estes se livram do lodo com grande custo: têm de tirar as roupas e tomar banho antes de se apresentarem na assembléia.
Isolda, que descera da montaria, faz sinal a Tristão que vai também passar o vau. A seu lado, Dinas ocupa-se a ajudar a rainha. "Senhora — diz-lhe —, ides sujar o vestido ao atravessar o pântano. Ficaria triste se vos acontecesse algum dano." Isolda ri-se, pois tinha a sua idéia na cabeça. Despiu o casaco forrado de arminho, que confiou a Dinas de Lidan, só conservando a túnica de seda branca, o diadema de ouro, as jóias do pescoço e das mãos e os finos sapatos. Com um piscar de olhos, fez compreender vesaria, escrínios e relicários esmaltados. Artur saiu do seu pavilhão e falou em primeiro lugar: "Rei Marcos — disse —, é ultrajar a rainha exigir-lhe semelhante juramento. Aqueles que te levaram a reunir esta assembléia fizeram-te uma patifaria e deviam pagá-la caro. És demasiado crédulo e deixas-te enganar pelos intrigantes. Mas já que Isolda, a nobre rainha, a complacente, se quer submeter a esta provação, consinto que se realize na minha presença. Declaro-o solenemente: uma vez justificada com o juramento, mandarei enforcar todos aqueles que tiverem a audácia de falar mal dela." Marcos respondeu-lhe: "Ai de mim! As tuas censuras atingem-me e aceito-as. Mas que podia fazer quando os meus barões me predispunham contra a rainha? Fiz mal em ouvir-lhes as palavras malevolentes e tomar as suas mentiras por avisos sinceros. Asseguro-te, rei Artur, que, se depois deste julgamento, se obstinarem em a maldizer, não terão de mim nenhum perdão." Artur dirigiu-se então a toda a multidão: "Gente da Cornualha, escutai-me! A rainha vai comparecer livremente e de sua plena vontade: sobre as relíquias dos santos, prestará juramento ao rei do Céu de que nunca teve com Tristão relações das quais possa ser censurada. Quando a tiverdes ouvido tomar Deus por testemunha, não mais tereis o direito de suspeitar dela."
Os assistentes dispuseram-se diante das tendas, e os dois reis conduziram Isolda segurando-lhe as mãos. A rainha, depois de se ter descalçado e suplicado a Deus, os braços estendidos para a frente, avançou para as relíquias, vestida unicamente com a túnica de seda branca. Em volta, os barões contemplavam a sua beleza. "Escutai-me, Isolda, a bela — continuou Artur. — Jurai aqui que Tristão não teve por vós mais do que o amor devido à mulher de seu tio e que vós não tivestes por ele outro amor além do devido ao sobrinho de vosso marido. Jurai-o." Então Isolda respondeu: "Sire, farei ainda melhor do que o que me pedis. A fim de o rei Marcos e todo o povo da Cornualha ficarem inteiramente seguros de mim, perante Deus e toda a corte celeste, sobre estas santas relíquias e sobre todas as que estão pelo mundo, juro que jamais homem algum entrou nas minhas coxas senão o rei Marcos, meu marido, e aquele leproso que, há pouco, me trouxe às costas como um animal de carga." Estendeu então a mão direita por cima dos corpos santos e, com uma voz forte e segura, pronunciou ao senescal que não precisava dele para atravessar o vau. Dinas afastou-se, seguiu a margem e acabou por encontrar outro vau um pouco mais baixo, por onde passou sem dificuldade.
Isolda sabia perfeitamente que a observavam do outro lado. Aproximou-se do palafrém e, mais depressa que um escudeiro, atou sobre o arção as presilhas da gualdrapa, meteu a cilha sob a sela, tirou-lhe o freio e o peitoral, e depois, vergastando o animal com a chibata, fê-lo entrar na água de modo que passou sozinho o pântano e atingiu a outra margem. Isolda via, do outro lado, os dois reis e os vassalos e divertia-se com a sua surpresa. Que lhe aconteceria na travessia do Mau Passo, privada de montada? Viram-na subitamente avançar para a entrada da ponte de feixos e dirigir-se ao leproso empoleirado no outeiro: "Mendigo, não me quero sujar na travessia; levar-me-ás às costas como um burro, em passos lentos, sobre as pranchas do pontilhão." "Nobre rainha, não me peçais semelhante serviço: estou doente e não me seguro nas pernas, de tal modo o mal me enfraqueceu!" "Pouco importa, despacha-te e curva o lombo!" O leproso obedece, baixa a cabeça e inclina as costas; ela monta nele, que se estica, se apóia na muleta, avança pela travessa de madeira e anda como que com grande esforço, coxeando, fingindo arquejar e escorregar por vezes na lama.
Quanto a Isolda, muito à vontade, perna daqui, perna dali, aperta fortemente o leproso entre as coxas e, com a mão, apalpa-lhe as costas. Da margem, os assistentes observam-nos e não adivinham nada. Na montaria, lentamente, Isolda atinge a outra margem do pântano. Artur e Marcos foram ao seu encontro. A rainha deixa-se escorregar. O portador pede-lhe com que se alimentar. "Ah! — diz Artur —, mereceu-o bem, rainha, dai-lhe!" Responde Isolda: "Pela fé que vos devo, sire, ele não necessita de absolutamente nada. Enquanto o cavalgava, reparei - que era um mendigo forte e, apalpando-o, senti que o alforje estava cheio. Tem as vossas polainas e o capuz do meu senhor; nada lhe darei; deve estar contente em ter-me sido útil." Nisto, um escudeiro lhe traz o palafrém e a rainha monta nele..
Diante das tendas dos dois reis, senhores, clérigos e gente do povo estavam reunidos. Um lençol de seda ricamente bordado estava estendido na erva e haviam aí disposto todos os corpos santos do país, tirados do tesouro das igrejas, relicários de ourivesaria, escrínios e relicários esmaltados. Arthur saiu do seu pavilhão e falou em primeiro lugar: “Rei Marcos – disse – é ultrajar a rainha exigir-lhe semelhante juramento. Aqueles que te levaram a reunir esta assembléia fizeram-te uma patifaria e deviam pagá-la caro. És demasiado crédulo e deixas-te enganar pelos intrigantes. Mas já que Isolda, a nobre rainha, a complacente, se quer submeter a esta provação, consinto que se realize na minha presença. Declaro-o solenemente: uma vez justificada com o juramento, mandarei enforcar todos aqueles que tiverem a audácia de falar mal dela.” Marcos respondeu-lhe: “Ai de mim! As tuas censuras atingem-me e aceito-as.
Mas que podia fazer quando os meus barões me predispunham contra a rainha? Fiz mal em ouvir-lhes as palavras malevolentes e tomar as suas mentiras por avisos sinceros. Asseguro-lhe rei Artur que, se depois deste julgamento , se obstinarem em a maldizer, não terão de mim nenhum perdão”. Artur dirigiu-se então à multidão: “Gente da Cornualha, escutai-me! A rainha vai comparecer livremente e de sua plena vontade: sobre as relíquias dos santos, prestará juramento ao rei do Céu de que nunca teve com Tristão relações das quais possa ser censurada. Quando a tiverdes ouvido tomar Deus por testemunha, não mais tereis o direito de suspeitar dela.
Os assistentes dispuseram-se diante das tendas, e os dois reis conduziram Isolda segurando-lhe as mãos. A rainha, depois de se ter descalçado e suplicado a Deus, os braços estendidos para a frente, avançou para as relíquias, vestida unicamente com a túnica de seda branca. Em volta, os barões contemplavam a sua beleza. “Escutai-me, Isolda, a bela – continuou Artur – Jurai aqui que Tristão não teve por vós mais do que o amor devida à mulher de seu tio e que vós não tivestes por ele outro amor além do devido ao sobrinho de vosso marido. Jurai-o”. Então Isolda respondeu: “Sire, farei ainda melhor do que o que me pedis. A fim de o rei Marcos e todo o povo da Cornualha ficarem inteiramente seguros de mim, perante Deus e toda a corte celeste, sobre estas santas relíquias e sobre todas as que estão pelo mundo, juro que jamais homem algum entrou em minhas coxas senão o rei Marcos, meu marido, e aquele leproso que, há pouco, me trouxe às costas como um animal de carga”. Estendeu então a mão direita por cima dos corpos santos e, com uma voz forte e segura, pronunciou a fórmula sacramental, segundo o rito da Santa Igreja: "Assim como disse a verdade, possa Deus TodoPoderoso vir em meu socorro!" Fez-se um grande silêncio entre o povo e os barões, como se esperassem que Deus se manifestasse por meio de um sinal sensível, mas nada se produziu. Isolda rompeu o silêncio em primeiro lugar e disse: "Rei Artur, ouvistes o que jurei do meu marido e do leproso: excluo esses dois do juramento e mais nenhum. Em verdade, não posso fazer mais nada." Artur respondeu: "Todos os que ouviram a fórmula deste juramento concordarão que nada mais se pode exigir. A rainha era unicamente obrigada a justificar-se em relação a Tristão, e prestou um juramento que se aplica, excetuando o leproso, a todos os outros homens! Infeliz daquele que, doravante, suspeite dela!" O rei Artur dirige-se pela última vez ao rei Marcos, em presença de todos os barões: "Rei, vimos e ouvimos bem a justificação de Isolda: nada mais deixa a desejar. Que os traidores e os maus — poderia citar-lhes os nomes — não duvidem; que nunca mais deixem escapar uma calúnia. Pois, em paz ou em guerra, se soubesse que dizem da rainha Isolda qualquer má palavra, nada me impediria de vir eu mesmo vingá-la!" "Nobre senhor — diz Isolda —, muito vos agradeço!" Da assistência sobem aclamações dirigidas à rainha; na multidão, os traidores e os seus amigos escondem-se e perdem-se. Depois, cada um volta para casa, Artur para Durham e Marcos para Tintagel. Quanto a Tristão, depois de ter escutado de longe o juramento, juntara-se a Gorvenal numa moita e voltaram juntos para a cabana do florestal.

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