XXVIII A miragem da outra Isolda

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NESSE tempo reinava na Pequena Bretanha, à qual também chamavam
Armórica, um velho duque de nome Hoël, a quem o vizinho, o conde Riol de Nantes, guerreava rudemente. O duque tinha um filho chamado Kaherdin, bravo e cortês, e uma filha, bela e bem-educada, a quem chamavam Isolda das mãos brancas. Tristão ofereceu os seus serviços ao duque, que o aceitou, e tão bem fez, com a ajuda de Kaherdin, que libertou várias cidades sitiadas pelo inimigo e obrigou o conde Riol a implorar a paz.
Porque a filha de Hoël tinha o nome de Isolda e assemelhava-se muito com a Isolda da Irlanda, Tristão deleitava-se a fitá-la. A donzela, porque o via belo e valoroso, apaixonou-se por ele. Um dia em que Tristão cavalgava com Kaherdin, começou a pensar em Isolda, a loura, que deixara em Tintagel, e afundou-se num tão profundo devaneio que já não sabia se dormia ou estava acordado. Kaherdin apercebeu-se disso, mas não disse uma palavra, receando importunálo. Tristão, mergulhado nos seus pensamentos, começou a cantar a meia-voz:

Isolda, minha força;
Isolda, minha querida
Em vós, minha morte, em vós, minha vida!

Era o refrão de um lai bretão que compusera não há muito em honra de Isolda, a loura. Quando saiu finalmente deste devaneio, sentiu-se constrangido perante Kaherdin. O companheiro disse-lhe:
"Amigo, não é de bom senso pensar demais!" "Falas verdade — replicou Tristão —, mas não é de admirar que o homem que tem o coração em tormento por vezes se perca." "Amigo — disse Kaherdin —, vejo-te mais pensativo do que desejaria e creio bem que é por qualquer dama ou donzela. Se te apraz confias-te a mim, não me pouparei a nada para aliviar-te a dor." "Vou dizer-to — continuou Tristão. — Amo tanto uma bela chamada Isolda, para quem compus esta canção, que suspiro por ela como podes ver. Se essa Isolda não existisse, desejaria deixar este mundo." Quando Kaherdin ouviu o nome de Isolda, julgou que Tristão referia-se a sua irmã, pois nunca ouvira falar de outra Isolda e teria muito prazer que Tristão se tornasse seu cunhado. Disse: "Tristão, por que mo escondeste tanto tempo? Fica sabendo: se tivesse pensado que querias a minha irmã, asseguro-te que não terias de sofrer uma longa espera." Tristão compreendeu que Kaherdin se enganara quanto ao objeto dos seus sonhos, mas não ousou desenganá-lo, pois o seu coração estava agitado por sentimentos diversos e o seu espírito atravessado por pensamentos contraditórios.
À noite, sozinho no quarto, dirigia-se baixinho a Isolda, a loura, como se esta estivesse presente: "Bela, como as nossas vidas são diferentes! Na separação que suportamos, só há amargura para mim. Perco por ti a alegria e o prazer que enchem os teus dias e as tuas noites. A minha vida não passa de incessantes torturas, a tua de encantamentos de amor. Só vivo para te desejar, ainda que só conheças nos braços do teu marido gozo e voluptuosidade. O rei tem todo o vagar para se deliciar contigo: o que foi o meu bem tornou-se a sua presa." Este pensamento fê-lo sentir tanta amargura que se apanhou a dizer: "Sei bem as alegrias que Isolda tem: ela, por quem o meu coração despreza todas as mulheres, compra o prazer com o esquecimento a que me vota. E eis agora que sinto a amarga angústia de me sentir desejado por outra mulher; o amor ardente com que esta donzela me requer torna ainda mais insuportável a dor de ser abandonado pela rainha. Se a loura Isolda não se acautela, terei de renunciar ao que não posso ter: encontrarei o apaziguamento neste novo amor. Em vez de suspirar pelo impossível, restringirei as minhas forças às coisas acessíveis. Para que eternizar um amor do qual não pode vir nenhuma alegria? Que Isolda, a loura, ame o seu dono e senhor e fique com ele. Não a quero censurar: o homem não deve odiar o que adorou, pode unicamente libertar-se, afastar-se e desprender-se disso. Quero doravante esforçar-me, a exemplo da loura Isolda, por apreciar o encanto que há nas carícias sem amor. Mas como experimentá-lo senão casando com a jovem que se enamorou de mim e que aspira a dar-me esse prazer?"
Tristão deseja Isolda das mãos brancas pela sua beleza, que era como que um reflexo da de Isolda da Irlanda, e também pelo nome de Isolda, que lhe recorda o primeiro amor: é a reunião do nome e da beleza que lhe inspira o desígnio de tomar a jovem por mulher. O sofrimento vem-lhe de uma Isolda, é de outra Isolda que espera a consolação. Eis que mostra por ela tanto ardor, que tem para com os seus parentes tantas belas palavras, que todos concordam em celebrar o casamento.
No dia fixado, todos os preparativos estão terminados para as núpcias: Tristão casa com Isolda das mãos brancas. O capelão celebra o ofício, depois demoramse num banquete de festa. Saem para divertirem-se na música, no lançamento do dardo e na esgrima. O dia passa com os prazeres, a noite está próxima; o leito nupcial está preparado. A moça entra em primeiro lugar. Tristão despe a túnica, mas, ao retirar a manga direita, ajustada ao punho, deixa escorregar do dedo o anel de prata com engaste de jaspe verde que a rainha lhe dera no dia da separação. O anel tilinta nas lajes com um som claro, Tristão inclina-se para apanhá-lo e contempla-o longamente. Como por encanto, a radiosa imagem de Isolda, a loura, surgiu diante de si e encheu-o até ao mais fundo do ser de uma emoção indizível. O anel mágico fez a sua obra. Recolocou diante dos olhos do amante a imagem, um instante esfumada, da longínqua bem-amada. Um remorso insinua-se-lhe na alma e em breve a domina: arrepende-se da conduta e absorve-se em amargas reflexões. Esse anel, que meteu no dedo, rememora-lhe o pacto da mútua fidelidade concluído com Isolda na hora do último adeus. Suspira do fundo do coração e diz para consigo mesmo: "Eis que eu próprio me coloquei, por causa de um louco erro, numa dura necessidade. O meu dever de marido é de me deitar ali, uma vez que casei com esta donzela. As conveniências exigem que me estenda ao lado dela: já é tarde para me retirar! Eis o belo trabalho do meu coração demente, fútil e volúvel!"
Tristão deita-se, Isolda enlaça-o ternamente, beija-lhe a boca e a face. Deseja ardentemente aquilo a que Tristão se recusa. Não é que não esteja disposto a acariciar a sua jovem mulher, mas um amor maior retém-no e faz calar o apelo dos sentimentos. A paixão por Isolda, a loura, mais forte que nunca no seu coração, paralisa-lhe a vontade e torna a natureza impotente. Vê que a jovem é desejável e ardente; aspira a volúpias, mas o outro desejo é suficientemente forte para dominar o instinto da carne: tudo cede àquele grande amor. E é para Tristão um embaraço, um tormento, uma inquietação e uma angústia não saber como se manter casto, que conduta ter com a mulher, a que estratagema recorrer. Subtrai-se aos abraços da jovem esposa e ilude o prazer que ela procura. Dá um único beijo a Isolda das mãos brancas e diz-lhe: "Minha bela amiga, não tomeis isto por uma vilania ou um ultraje. Quero fazer-vos uma confissão, pedindo-vos que a guardeis só para vós, pois nunca a confiei a mais ninguém. Aqui, no meu lado direito, tenho uma ferida que me afligiu longamente e que ainda esta noite me atormenta duramente. As fadigas que suportei guerreando os inimigos de vosso pai acordaram em mim a dor. Por causa dela, não me posso entregar aos prazeres amorosos. Mas tê-los-emos quando o quisermos." Isolda respondeu-lhe: "Estou aflita, mais do que saberia dizer, com o mal de que sofreis. Quanto à coisa de que me falais, quero e posso muito bem passar sem ela esta noite." Assim ficou Tristão, durante toda a noite, estendido, sem se mover, ao lado da esposa. Ela, que dos jogos do amor só conhecia os abraços e os beijos, adormeceu com toda a simplicidade enlaçada a Tristão. Mas chegada a manhã, quando as servas lhe ajustaram o véu das mulheres casadas, sorriu tristemente e pensou que não tinha nenhum direito a ele.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora