IX Cumpre-se o sortilégio

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JÁ AS NAUS, tendendo as vagas espumosas, singravam o alto mar. Isolda, sentada longe no pavilhão das mulheres, via a costa da Irlanda apagar-se na bruma. Suspiros enchiam o seu peito e as lágrimas deslizavam-lhe pelo rosto. Lamentava-se por deixar o país natal, os parentes e amigos, para vogar com homens desconhecidos, sem saber qual o destino. Tristão consolava-a, tão docemente quanto podia, cada vez que a encontrava a moer a sua dor. Fazia-o com o respeito que o vassalo deve à sua senhora, pois, por mais impressionado que estivesse com a sua beleza, não tinha outro querer, o fiel, que de lhe ser um reconforto na dor. Isolda respondia-lhe com despeito: "Deixai-me! Afastai-vos! Que importuno sois!" "Por que vos sou importuno?" "Porque vos odeio." "Bela, por qual delito?" "Porque, sem vós, estaria ainda livre de cuidados e dores. Fostes vós que, com astúcia e engano, me pusestes nesta aflição. Que funesto destino vos enviou, para minha infelicidade, da Cornualha à Irlanda? Para onde me levais? Não sei..." "Sossegai, bela Isolda, pois vivereis em grande alegria, rainha poderosa numa terra rica! Em breve vos darei por senhor um rei em quem encontrareis cada dia alegria e saber viver, bem, virtude, honra." "Não sei, em verdade, por que me fazeis todos esses elogios ao rei Marcos, vosso tio. Pouco me importa que sejam verídicos ou inventados a contento. Uma única coisa conta a meus olhos: o desprezo que mostrais por mim." "Qual desprezo?" — interrogou Tristão. "Por que me perguntais o que sabeis perfeitamente? O meu pai estava pronto a dar-me a vós em recompensa, desprezaste-me e, tomando como pretexto a fábula do cabelo de ouro, pedistes a minha mão não para vós, mas para o vosso tio." Tristão não soube o que responder, pois parecia-lhe supérfluo e irritante repetir novamente com minúcia a história das andorinhas, do cabelo de ouro e do juramento solene feito a Marcos.
Entretanto as duas naus corriam pelo mar; até então o vento fora favorável e a travessia boa. Todavia Isolda e as mulheres do seu séquito não estavam habituadas às fadigas dos ventos e das vagas e em breve sentiram um mal-estar nunca experimentado. Na véspera de São João, os ventos caíram; num céu sem nuvens, o sol, com todo o seu brilho, fazia cintilar as vagas. Um pesado calor oprimia os homens: Tristão mandou aportar numa ilha e, cansados do mar, os homens e as mulheres desceram a terra para se recrearem nas sombras. Isolda preferiu ficar no pavilhão, unicamente em companhia de Brangia: mais ninguém ficou no navio irlandês. Foi então que a ardilosa criada, vendo a rainha fechar-se selvaticamente na sua tristeza e despeito, esforçou-se em acalmá-la com palavras astuciosas: "Por que consumir as horas e os dias num sombrio desgosto? Por que temer e maldizer antecipadamente a vossa união com o rei Marcos? Nada podeis fazer, uma vez que vosso pai soberamente o decidiu: convém-vos agora tirar o melhor partido dessa necessidade e conformai-vos." Isolda pareceu irritada com estas palavras e replicou, não sem vivacidade: "De que serve pregares-me tolamente resignação quando não tens nenhum meio para acalmar a minha inquietação? Cessa de me afligires com vãs palavras!" "Seja — continuou Brangia —, renuncio a aconselhar-vos, mas deixai-me desvendar-vos um segredo que deverá trazer a calma à vossa alma. A rainha vossa mãe fez-me prometer que não o revelaria a ninguém, nem mesmo a vós, mas o estado de desolação em que vos vejo força-me a dele vos dar parte. Não acho outro meio de suavizar o vosso sofrimento. A rainha, antes da nossa partida, confiou aos meus cuidados uma bebida ervosa que preparou com toda a sua ciência da magia: é um filtro de amor que servirei ao rei Marcos e a vós após terdes entrado no leito nupcial. Bebê-lo-eis os dois ao mesmo tempo e, mal o tiverdes feito, amar-vos-eis com todas as forças e com toda a alma, num amor imperioso e sem falha. Durante três anos, nem sequer vos podereis separar mais de um dia sem sofrer, nem mais de uma semana sem risco de morrerdes. Tal é a força inaudita desse sortilégio que o desgosto de amor será por ele banido do vosso coração e vivereis doravante, no reino da Cornualha, feliz e cumulada de todos os bens. Renunciai pois a torturar-vos, já que a vossa felicidade está assegurada antecipadamente pela força do vinho ervoso." Esta brusca revelação mergulhou Isolda em tal estupor que ficou muito tempo sem falar, absorta nos seus pensamentos, mas redargüiu finalmente, com a mesma vivacidade de tom: "Iludes-te muito se pensas que vou beber esse vinho ervoso cuja existência acabas de me dar a conhecer e partilhá-lo com o rei Marcos na noite de núpcias. Podes apresentar-no-lo, como a minha mãe te ordenou; pela minha parte, não lhe prometi nada nem ela me pediu alguma coisa. Não sou, portanto, obrigada a beber esse licor mágico e não o beberei. Se o partilhasse com o rei Marcos, farme-ia cúmplice das manobras tortuosas de Tristão. Não, não farei o seu jogo, não me curvarei às suas vontades! O rei Marcos beberá esse vinho ervoso sem desconfiança alguma quando lho ofereceres, mas eu previno-te: embora aproxime a taça da boca, não beberei nem uma gota. O sortilégio não terá efeito algum sobre mim. Brangia replicou: "Dizei-me, Isolda: se Tristão vos tivesse pedido para si a vosso pai e se vos tivesse obtido, teríeis aceitado beber o filtro do amor que vossa mãe me teria sem dúvida igualmente confiado para a noite de núpcias? É uma coisa que desejo saber: não mo escondais!" Isolda vacilou um longo momento, depois disse: "Não te posso responder nem sim nem não. Cansas-me com as tuas perguntas. Deixa-me em paz!" A criada afastou-se então, mas ficou a saber que a aparente aversão de Isolda por Tristão procedia, sem que ela disso tivesse consciência, de um desejo amoroso inconfessado e desenganado.
Pouco depois, vendo que Isolda ficara no navio e se recusava a tomar parte nos divertimentos na ilha, Tristão dirigiu-se ao pavilhão para saudá-la e visitá-la. Quando, sentados lado a lado, trocavam algumas palavras, ambos sentiram sede e disseram-no um no outro. Isolda chamou Brangia e ordenou-lhe que trouxesse vinho. Esta apressou-se a alcançar o ângulo do pavilhão onde os marinheiros irlandeses haviam colocado as arcas de Isolda e do seu séquito. De uma delas retirou o precioso frasco, reconhecível entre todos, onde a rainha da Irlanda deitara o vinho ervoso. Nesse instante, o rosto da jovem iluminou-se num sorriso furtivo: tinha entre as mãos o meio mais seguro de fazer nascer o amor em Tristão e de ligá-lo para sempre a Isolda. Brangia colocou o frasco com uma taça de prata cinzelada numa mesa à qual Isolda se encostara e disse-lhe com um ar risonho: "Rainha Isolda, tomai esta bebida que foi preparada na Irlanda para o rei Marcos." Isolda não respondeu nem interferiu com a criada. Quanto a Tristão, esse julgou tratar-se de um vinho de eleição oferecido ao rei Marcos.
Como homem cortês e bem-educado, deitou a poção na taça e estendeu-a a Isolda, que bebeu até se fartar. Quando ela pousou a taça ainda meio cheia, Tristão pegou nela e esvaziou-a até a última gota.
Mal os dois jovens beberam desse vinho, o amor, tormento do mundo, penetrou nos seus corações. Antes de se terem apercebido disso, curvou-os a ambos ao seu jugo. O rancor de Isolda dissipou-se e nunca mais foram inimigos. Já se sentiam ligados um ao outro pela força do desejo e, no entanto, ainda o escondiam um do outro. Por mais violenta que fosse a atração que os empurrava para o mesmo querer, ambos tremiam igualmente no temor da primeira confissão.
Quando Tristão sentiu o amor apossar-se do seu coração, recordou-se imediatamente do juramento feito ao rei Marcos, seu tio e seu suserano, e quis recuar: "Não — dizia consigo mesmo sem cessar —, deixa isso, Tristão, volta a ti, não acolhas em ti um desígnio tão desleal." Também ponderava: "Audret, Denoalen, Guenelon e Gondoíne, traidores que me acusáveis de cobiçar a terra do rei Marcos, ah!, ainda sou mais vil e não é a sua terra que cobiço. Bom tio, que me recolhestes órfão antes mesmo de reconhecer o sangue de vossa irmã, vós que me choráveis enquanto Gorvenal me levava para o barco sem remos nem vela, por que não expulsastes, logo no primeiro dia, a criança errante vinda para vos trair?" Mas o coração trazia-o sem descanso ao mesmo pensamento de amor. Por vezes, juntava a coragem como faz um prisioneiro procurando evadirse, e repetia consigo mesmo: "Muda o teu desejo, ama e pensa noutra!" Mas o laço cada vez se apertava mais. Quanto a Isolda, todo o seu pensamento não era mais que o amor de Tristão. Até ao anoitecer, durante longas horas, procuaramse às apalpadelas como cegos, infelizes quando se mantinham silenciosos e enlanguesciam separados, mais infelizes ainda quando, reunidos, recuavam ante a embriaguez do primeiro beijo.
Isolda falou em primeiro lugar e de maneira bem feminina — foi por meio de longos desvios que sé aproximou pouco a pouco do seu amado: "Ah!, quando se apresentou a ocasião tão propícia de vos ferir no banho, quando deixei cair a espada já brandida, meu Deus!, que fiz eu? Se tivesse sabido então o que sei hoje, palavra de honra que vos teria morto!" "Por que, bela Isolda? Que vos atormenta?" "Tudo o que sei me atormenta; tudo o que vejo me faz mal; o céu e o mar atormentam-me e o meu corpo e a minha vida." Inclinou-se e apoiou o braço nele — foi esta a sua primeira ousadia. Os seus olhos claros como espelhos embaciaram-se com lágrimas furtivas, o seu peito encheu-se, os seus doces lábios fremiram, inclinou a cabeça. Ele disse-lhe em voz baixa: "Isolda, só vós e o amor me perturbaram e me fizeram perder o senso. Deixei a estrada e eis-me de tal modo perdido que jamais a voltarei a encontrar. Tudo o que os meus olhos vêem parece-me sem preço. Em todo o mundo, nada é querido ao meu coração excetuando vós." Isolda respondeu: "Senhor, tal sois vós para mim." Nos seus belos corpos vibravam a juventude e a vida. Quando fogos de alegria se acendiam na ilha e os marinheiros dançavam cantando à volta das chamas avermelhadas, os dois enfeitiçados, renunciando a lutar contra o desejo, abandonaram-se ao amor.
Brangia, após ter servido o vinho a Isolda, tinha-se juntado às outras aias da rainha na ilha, mas o seu pensamento estava longe. Quando voltou para a nau irlandesa, viu num banco, à claridade das estrelas, o frasco de vinho que Isolda aí deixara. Pegando então no frasco, vazio até mais de metade, correu a escondê-lo de novo na arca de onde o tirara. Foi então que distinguiu, na penumbra, Isolda estendida num leito nos braços de Tristão. Fingiu então a mais profunda surpresa e soltou um grande grito, como se não tivesse previsto nem desejado o que estava a acontecer. Para melhor iludir Tristão, lamentou-se em voz tão alta e dolente que o mais insensível teria ficado impressionado: "Infelizes, parai e voltai atrás, se ainda o podeis! Mas não, vejo-o bem, por meu fatal equívoco, a força do amor arrasta-vos! É o vinho ervoso que vos possui, a poção que a rainha da Irlanda me confiara quando da nossa partida. Só o rei Marcos e Isolda deveriam bebê-lo na noite de núpcias. O Diabo serviu-se de mim e foi a vós que deitei esse filtro mágico quando me pedistes com que matar a sede. Por minha culpa, bebestes, um e outro, do cálice de prata, a embriaguez e os tormentos do amor." Mas os amantes, completamente absorvidos pelas carícias mútuas, não lhe respondiam.
Entrementes, Gorvenal, que tomara parte nos regozijos dos ma¬rinheiros, voltara para o navio irlandês, onde sabia que Tristão fazia companhia a Isolda. Estava diante do pavilhão das mulheres no momento em que Brangia confessava aos amantes o seu pretenso equívoco. Assim, o fiel escudeiro de Tristão foi o único, juntamente com Brangia, a conhecer desde essa noite o segredo da bebida ervosa e o amor que esta fizera nascer entre Tristão e a filha do rei da Irlanda. Ninguém entre os marinheiros dos dois navios soube disso e nenhuma das mulheres irlandesas que acompanhavam Isolda teve a menor suspeita.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora