XIII A harpa e a rota

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UM DIA em que Tristão partira a caçar com Gorvenal e os companheiros na floresta, uma grande e bela nau aportou em Tintagel. Comandava-a um barão da Irlanda, e a nau pertencia-lhe com tudo o que transportava. Era orgulhoso e ávido de honras. Cavalgou até à corte de Marcos num corcel bem ajaezado e ornado, sem escudo nem lança, mas trazia às costas uma harpa toda incrustada de ouro. Saudou primeiro o rei e a rainha Isolda. Esta reconheceu-o imediatamente, pois cortejara-a durante longo tempo, sem êxito, e foi para tornar a vê-la que viera da Irlanda até a Cornualha. Ela inclinou-se logo para o rei e segredou-lhe quem era aquele nobre irlandês, mas não achou oportuno revelar-lhe que durante muito tempo ele a amara e cortejara. No entanto, pediu ao rei que recebesse o estrangeiro com honra. Marcos fez como ela queria: convidou o hóspede para jantar, e admitiu-o, em sinal de amizade, a comer na sua própria escudela. Durante toda a refeição, o irlandês conservou a harpa pendurada ao pescoço e declarou que não a pousaria por nada deste mundo, nem mesmo para prestar amizade ou honra a quem quer que fosse. À volta dele, os senhores troçavam entre si do homem da harpa, mas este não dava atenção à sua zombaria. Quando o rei acabou de comer e as mesas foram levantadas, os barões da corte começaram a recrear-se. Então o rei perguntou, na presença de todos, ao vassalo da Irlanda se este sabia tocar harpa e se, por amor dele, não queria tocar uma melodia no seu instrumento. O irlandês respondeu: "Nunca acedo a recrear um rei num país estrangeiro se não sei antecipadamente qual será a minha paga." "Então — disse o rei —, distrai-nos com algum canto da Irlanda e dar-te-ei em recompensa o que quiseres." "Seja" — retorquiu o irlandês. Pegou na harpa e tocou uma melodia do seu país que agradou muito a todos. O rei pediu-lhe que tocasse outra, tão bela ou ainda mais bela, e ele tocou outra duas vezes mais bela que a primeira; era uma alegria escutá-lo. Quando acabou, disse perante toda a corte: "Rei, executa agora o pacto a que acedeste." "Fá-lo-ei com todo o gosto — disse o rei. — Diz-me então o que pedes como paga." "Nada mais quero como paga além da bela Isolda — respondeu o tocador de harpa. — Não tens tesouro nem jóia mais ao meu desejo." "Por minha fé — exclamou Marcos —, não a terás nunca. Pede antes uma coisa que me seja possível conceder-te." O estrangeiro replicou: "Eis que faltas à tua palavra e rompes a promessa dada em presença de toda a corte. Segundo a lei e o direito, não deves mais governar um reino, pois um príncipe que mente publicamente e não cumpre o juramento não deve conservar o senhorio e o poder sobre os barões. Se me recusas o que reclamo de ti, entrego a causa ao julgamento dos homens sábios aqui presentes; e se encontrares alguém que negue o meu direito e o ouse contestar, defenderei neste dia a minha causa contra ele sob o olhar de toda a corte. Se renegas a promessa, não tens mais nenhum direito sobre este reino: prová-lo-ei contra ti pelas armas, contanto que a tua corte queira pronunciar um justo julgamento." O rei Marcos ouviu este discurso. Olhou em volta para os seus barões: nem um único se ousa erguer contra o irlandês, chamar a si a causa do seu senhor e libertar a rainha, pois todos viram que o estrangeiro era um homem cheio de força e de desmesura, experiente no manejo das armas. Quando o rei compreendeu que nenhum se queria arriscar a combater o tocador de harpa, entregou-lhe a rainha: nenhum dos seus conselheiros ousou levantar a voz para censurar este abandono.
Então o irlandês sentou Isolda na sela com ele e levou-a, radiante, para a beiramar. A rainha ia cheia de dor, chorava o seu destino, lamentava-se e maldizia a hora em que Tristão partira para a caça. Por certo que se estivesse lá quando o rei a entregara, tê-la-ia resgatado à custa de um duro combate: teria preferido perder a vida a não a reconquistar! O irlandês levou a bela lacrimosa para um pavilhão erguido à beira-mar. Depô-la num leito e ordenou que preparassem imediatamente a nau para darem à vela o mais depressa possível. Mas o navio estava encalhado em seco na areia, a maré mal começara a subir e ainda estava muito longe da nau.
Nesse momento, Tristão voltou da floresta. Soube da nova de que a rainha fora entregue a um tocador de harpa. Chamou Gorvenal, seu escudeiro, pegou na rota e cavalgou a grande velocidade para o pavilhão do irlandês. Numa duna que dominava a borda do mar, desceu do cavalo, entregou-o a Gorvenal e, levando a rota suspensa ao ombro, dirigiu-se para a tenda. Encontrou Isolda estendida num leito enquanto o irlandês esforçava-se em vão para consolá-la tocando lais na harpa. Ela recusava-se a ouvi-lo e lamentava-se cada vez mais. "Senhor — disse Tristão —, vim a correr para aqui. Disseram-me que éreis da Irlanda; também sou desse país. Suplico-vos, levai-me convosco para a Irlanda!" "Vagabundo — respondeu o irlandês —, toca rota para nos recreares, e se conseguires consolar a minha amada, dar-te-ei um bom casaco." "Deus vos recompense, senhor! Se eu me der ao trabalho de entretê-la, fá-lo-ei tão bem que, dentro de seis meses, não mostrará a menor sombra de desgosto." Tristão afinou a rota, que era um instrumento parecido com a sanfona e servia sobretudo para as danças e divertimentos do povo. Tocou uma doce melodia, que acompanhou com belos cantos.
Quando acabou a melodia, a maré subira e a nau estava desencalhada. Um marinheiro disse então ao barão irlandês: "Senhor, partamos depressa. Tardais demasiado a fazer-vos ao mar; se Tristão, o bravo, regressasse da caça, bem poderia atrasar-nos a partida. Tem mais fama que qualquer outro vassalo deste reino, e ninguém aqui se lhe ousa opor." O irlandês respondeu: "Maldito seja o covarde que teme o assalto de Tristão!" Depois, voltando-se para o tocador de harpa, pediu: "Irmão, toca mais qualquer coisa para consolar Isolda, a minha amada, e domar a sua dor." Tristão afinou de novo a rota e escolheu um lai deleitável de ouvir: Isolda escutava-o, mergulhada no encantamento. Preludiou longamente, depois terminou com uns acordes um pouco tristes.
Enquanto cantava o lai, o fluxo havia subido tão alto que já não se conseguia passar pela prancha que ia da beira-mar à nau. "Que fazer? — interrogou o irlandês. — Como levar Isolda para o meu navio? Deixemos a maré descer o suficiente para que a bela possa atravessar a ponte, a pé enxuto." Tristão respondeu-lhe: "Tenho além, no vale, um bom cavalo para levar a rainha até ao teu navio." "Trá-lo então!" Tristão foi buscar o corcel, montou-o, agarrou na espada e cavalgou até junto do vassalo da Irlanda. "Senhor — disse —, confiame Isolda, a rainha. Prometo levá-la suavemente." O irlandês pegou em Isolda e ergueu-a na ponta dos braços até à sela de Tristão, pedindo-lhe que se comportasse discretamente com a sua dama.
Tristão recebe Isolda no corcel e exclama: "Escuta, imprudente e louco! Conquistaste Isolda com a harpa, eu reconquisto-a com a rota. Se a perdes, é justo: ganhaste-a ao rei com trapaça, eu reconquisto-a com astúcia. Regressa, ridicularizado e maldito, à Irlanda, vil mentiroso. Esporeia o cavalo, cavalga a toda a velocidade pela costa, e daí para a floresta. O irlandês perdeu Isolda, Tristão leva a amante. Ao cair da tarde estavam na floresta, e juntos passaram uma bela noite.
De manhã, ao romper do dia, Gorvenal veio avisar o seu senhor de que o irlandês se fizera ao mar, lastimoso e totalmente confundido. Só então Tristão cavalgou com a rainha até ao palácio de Marcos e lha entregou: "Pela minha fé, sire, uma mulher não é de modo algum obrigada a amar um homem que a entrega por uma ária de harpa. Guardai-a melhor para outra vez, pois foi necessária grande astúcia para reconquistá-la."

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora