IV A barca sem vela nem remos

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OS SERVOS do rei apressaram-se a levantar Tristão e transportaram-no para uma cama, num dos quartos do palácio. Os mais hábeis médicos foram chamados à sua cabeceira, mas foi em vão que examinaram a profunda chaga que trazia do lado: era negra e fétida e não se tornava difícil adivinhar que fora feita por uma arma envenenada. Nenhum físico conseguiu descobrir a natureza do veneno nem levar remédio ao mal que causava. Em breve as dores se tornaram tão vivas que o bravo não podia pregar olho, nem de noite nem de dia; e também perdeu o apetite e a sede e tornou-se magro e fraco. Das suas chagas exalava um cheiro tão odioso que ninguém conseguia permanecer muito tempo perto dele; só o fiel Gorvenal e Dinas de Lidan se conservavam junto do seu leito. O próprio rei Marcos espaçava as visitas ou contentava-se em pedir notícias do ferido.
Tristão, vendo que o odor das suas chagas importunava os íntimos do palácio, não quis ser pesado a ninguém: fez com que o transportassem para uma cabana, que Gorvenal, a seu pedido, mandara construir num lugar isolado, à beira-mar. Aí, deitado sozinho diante das vagas pelas quais deixava errar o olhar, Tristão aguardava a morte. Todavia a intrepidez do seu coração inspirou-lhe o pensamento e o desejo de tentar a aventura no mar: recordou-se dos contos antigos, populares entre os celtas, que mostravam heróis infelizes confiando-se à sorte das correntes das tempestades e aportando em ilhas longínquas e maravilhosas onde fadas e seres mágicos curavam, com encantos poderosos, doenças e feridas. Conjurou então o rei Marcos para conceder-lhe este dom: partir além-mar para costas desconhecidas — não sabia onde — a fim de experimentar se Deus lhe concederia, no termo de uma longa viagem, a cura que ainda esperava.
O rei Marcos, primeiro assustado com a audácia deste projeto, pôs dificuldades em consentir no desejo de Tristão. Depois, vendo que as suas recusas contrariavam o sobrinho e pareciam agravar-lhe o mal, cedeu à sua instância, de acordo com Gorvenal. Tristão foi colocado, como era seu desejo, numa simples barca, sem vela, nem remos, nem leme, sozinho, sem nenhum companheiro. Só tinha ao alcance da mão alguns alimentos e a sua boa harpa, que não cessara de tocar desde que fora ferido, pois o canto e o som dos instrumentos haviam-se tornado a sua única consolação. Quando acabaram os preparativos, Gorvenal e o senescal Dinas de Lidan, reprimindo as lágrimas, empurraram para o alto mar o frágil esquife onde acabavam de depor o amigo. A barca desapareceu pouco a pouco no horizonte.
Durante sete dias e sete noites, as vagas arrastaram-no sem tréguas, ao sabor dos ventos e das correntes. Por vezes, Tristão tocava a harpa para acalmar a angústia e aliviar a dor. Uma manhã, de madrugada, apercebeu-se de que o marulho o havia empurrado para uma terra que jamais vira. Alguns pescadores que lançavam as redes, intrigados com o canto melodioso que vinha daquela barca à deriva, quiseram esclarecer o mistério: aproximaram-se e descobriram um ferido deitado no fundo da embarcação e que parecia extremamente fatigado. Perguntou-lhes que país era aquele onde o mar o atirara. "É a Irlanda" — responderam, e, desejosos de socorrê-lo, rebocaram a barca até ao porto vizinho de Weisefort, residência do rei Gormond. Grande foi a emoção de Tristão ao ver que Deus o dirigira para a pátria do Morholt, cuja irmã, poderosa feiticeira, residia no palácio de seu marido, o rei Gormond. Mas já não era possível recuar e, uma vez que quisera tentar a aventura, teria de ir até ao fim. Com risco de ser reconhecido pelos antigos companheiros do Morholt como o vencedor e assassino do gigante, Tristão deixou-se conduzir pelos pescadores até ao palácio do rei. Gormond queria ver e ouvir o tocador de harpa estrangeiro, vindo de além-mar cujos cantos haviam maravilhado os pescadores no porto. Estendido numa padiola, Tristão respondeu às perguntas do rei: "Sire, sou um jogral bretão. Meu nome é Tãotris. Vinha a bordo de um navio norueguês. Uns piratas atacaram a equipagem para se apoderarem da carga. No decurso da abordagem, recebi um grave ferimento e devo a minha salvação a uma barquinha sem vela, nem remos, nem leme, para a qual me consegui içar com a minha querida harpa." O rei Gormond declarou imediatamente que queria mandar tratar o ferido e que a rainha sua mulher encontraria sem dúvida alguma os remédios para curá-lo.
Nenhum dos assistentes reconheceu no pretenso Tãotris o valoroso combatente da ilha de Saint-Samson e o assassino do Morholt, de tal modo o veneno lhe havia deformado as feições e enfraquecido o corpo. A rainha Isolda, a pedido de seu marido, tratou de curar o ferido. A feiticeira, a própria que havia preparado o veneno para nele mergulhar a ponta da lança do irmão, descobriu sem dificuldade o tratamento eficaz para destruir o efeito da peçonha que havia destilado. Mandou colocar na chaga um emplastro, que ele conservou durante todo o dia e que rapidamente suprimiu o mau cheiro; depois abriu a ferida e tirou toda a carne morta, retirou com cuidado o veneno que ainda aí existia e a carne viva ficou com melhor aspecto. À noite, pôs sobre a chaga ervas salutares, que, em pouco tempo, fizeram desaparecer a inchação e a infecção.
Quando o dito jogral entrou em convalescença, a rainha, como era uso na época, confiou os cuidados do hóspede à filha, Isolda, então com doze anos, e cuja cabeleira loura tinha o brilho do ouro. A bela criança cumpriu de boa vontade todos os deveres da hospitalidade em relação ao hábil menestrel que o rei Gormond recolhera sob o seu teto. Fazia companhia ao hóspede de seu pai durante todo o dia, pensava-lhe a ferida e aplicava-lhe os remédios prescritos pela rainha. Tãotris, em troca, tocava para distraí-la lais bretões de aventura e de amor, fazendo-se acompanhar pela harpa. Melhor ainda, ensinava-lhe a arte de tocar os instrumentos e de cantar com esmero. A real criança parecia encantada e mostrava-se uma aluna dócil e jovial para o cantor errante.
Todavia, como o estrangeiro reencontrara pomo a pouco o vigor do seu corpo e a beleza das feições, veio o dia cm que correu o risco de ser reconhecido pelos companheiros do Morholt e de sofrer da sua parte terríveis represálias. Não podia duvidá-lo quando ouvia a loura Isolda contar-lhe sem desconfiança o regresso à Irlanda do cadáver do tio, cosido pelos seus homens numa pele de veado. Do crânio do gigante haviam extraído o fragmento deixado pela espada do vencedor, e a rainha guardava-o preciosamente num escrínio como relíquia de seu irmão. Tristão compreendeu então que devia desaparecer o mais depressa possível. Um navio mercante aprontava-se para deixar o porto: subiu a bordo com o acordo dos marinheiros e fez-se à vela com eles para longe da Irlanda. Algumas semanas mais tarde aportava na Cornualha. Jovens e velhos vieram recebê-lo e regozijaram-se como se ele regressasse de entre os mortos.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora