XXX O mocho e o corujão

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TRISTÃO enganava-se: Isolda não o votara ao esquecimento. Ê verdade que o rei Marcos fazia-lhe uma vida fácil e brilhante e mostrava-se atencioso e generoso, e ela lhe estava reconhecida; mas nada disso apagara no seu coração a imagem de Tristão nem enfraquecera o amor que lhe dedicava. Isolda, sozinha no quarto em companhia do cão Husdent, que lhe lembrava sem cessar o amigo, suspira por aquele que tanto deseja. O seu coração e o seu pensamento têm um único objetivo: amá-lo. O que mais a aflige é que, desde a sua partida, nunca mais teve uma notícia sua: ignora onde está e em que país, se está morto ou vivo. Está prostrada de tristeza e o seu espírito está assombrado pelo horrível pensamento de que talvez o amado tenha perdido a vida. Aguardara durante longo tempo que um mensageiro viesse da sua parte; a espera fora vã. Forte e ousado como era, não teria exposto o corpo numa aventura?
Havia na corte de Marcos muitas pessoas que estavam informadas dos feitos de
Tristão na Pequena Bretanha, mas, porque não gostavam nada dele, escondiam a Isolda tais notícias, reservando-se o direito de divulgar em todos os lugares o mal que sabiam por boatos; por isso, Isolda evitava encontrar esses barões cornualhenses. Um dia, no quarto, senta-se e, para melhor pensar no amigo, canta e toca na harpa um lai bretão que fora composto por ele. Conta como Guiron foi surpreendido e morto pelo marido da dama que amava acima de tudo, como, manhosamente, o ciumento deu a comer à mulher o coração de Guiron e como esta sofreu uma dor indescritível. A rainha canta docemente: harmoniza a voz com a harpa. As mãos são belas, o poema é comovente e o tom grave. Aparece então Kariado, aquele rico conde de alta linhagem que fora outrora companheiro de Tristão e o primeiro a, levado pela inveja, denunciar ao rei os amores do sobrinho e da rainha. Desde então, Kariado nunca mais cessara de cortejar Isolda, embora esta o tenha sempre repelido com desprezo. Se não fizera causa comum com os barões traidores, fora unicamente para não atrair a inimizade aberta da rainha, pois conservava sempre a esperança de conquistá-la com os seus galanteios e obter os seus favores. Quanto a Tristão, seu antigo companheiro, não perdia o ensejo de manifestar a sua malevolência e regozijava-se com as provações que o oprimiam. Uma vez mais, Kariado deixara o seu belo castelo e as terras férteis; viera a Tintagel na intenção de obter o amor da rainha. Isolda considerava as suas pretensões pura loucura; desde que Tristão saíra do país, o galante perdera o tempo a cortejá-la sem nunca obter nada. Era um belo senhor, cortês, altivo e orgulhoso, mas valia mais nos quartos das damas que na batalha; era, além disso, belo e bom conversador e fino contador de histórias.
Encontrou Isolda cantando o lai de Guiron, e como sabia muito bem que era Tristão o autor aproveitou para fazer, em tom de gracejo, desagradáveis alusões à possível morte do sobrinho de Marcos: "Senhora — disse —, eis um canto bem sinistro, onde só se fala de assassínio e de sangue! Pode dizer-se que é o canto do mocho, uma vez que, como é crença comum, o canto desse pássaro pressagia um falecimento. Deduzo que vai ser em breve questão de morte de homem. Além do mais, o vosso lai, na minha opinião, anuncia a morte do próprio mocho, isto é, do cantor que compôs esse lai." Isolda respondeu-lhe: "Falais verdade: o meu canto pressagia a morte da ave, mas o mocho ou o corujão sois vós que cantais para pesar dos outros; deveis antes temer a vossa morte, se receais que o
meu canto seja de mau agouro. Aposto que me trazeis hoje, como é vosso hábito, uma notícia má: comportais-vos exatamente como o corujão. Posso afirmar que nunca me contastes novas das quais tenha tirado satisfação e nunca aqui viestes sem anunciar desgraças. Nem sequer teríeis deixado a vossa casa se não tivésseis uma coisa desagradável para contar. Vós, Kariado, nunca tivestes a menor vontade de partir para longe a fim de realizardes feitos que vos trouxessem fama. Nunca se ouvirá sobre vós uma única notícia de que os vossos amigos se possam honrar ou com a qual fiquem contristados aqueles que vos odeiam. Estais sempre disposto a dizer mal das ações de outrem, mas das vossas nunca se falará." Kariado replicou então: "Senhora, eis-vos encolerizada sem que eu saiba por quê. Seria bem louco se receasse a morte que me agourais; isso não me importa absolutamente nada. Dizeis que sou o corujão; poderia responder-vos que sois o mocho e que ambos são pássaros de má sorte. Contudo, corujão ou não, é uma dura notícia que vos trago sobre o vosso amigo Tristão: está perdido para vós, pois casou noutra terra. Doravante ser-vos-á lícito apelar para outrem, já que ele desdenha o vosso amor. Casou em núpcias legítimas com outra Isolda, a filha do duque Hoël da Bretanha." Isolda respondeu com irritação: "Sempre fostes corujão para dizer mal de Tristão. Que Deus me prive de todos os seus bens se não me tornar mocho para vós! Destes-me uma má notícia, não vos darei melhor. Declaro-vos, procurais o meu amor inutilmente, nunca obtereis de mim o menor favor e, durante a minha vida, nunca vos amarei nem aos vossos galanteios. Teria procurado uma aventura bem funesta se, há pouco, tivesse aceitado o vosso serviço. Mais vale perder o amor de Tristão a ganhar o vosso!" Experimenta um violento furor e Kariado não se ilude. Sente que seria contrário aos seus interesses avivar com outras palavras a angústia da rainha: despede-se e afasta-se.
A rainha fica sozinha, atormentada por uma grande aflição. Tristão perjurou. Tristão! Será possível? Gostaria de se assegurar da verdade do fato, mas está de tal modo ferida e humilhada no seu íntimo que não se ousa confiar a ninguém, nem mesmo a Brangia, a sábia, nem ao franco Périnis.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora