V A donzela dos cabelos de ouro

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TRISTÃO, glorioso vencedor do Morholt, curado, contra toda a esperança, do seu horrível ferimento, ocupava doravante o primeiro lugar na corte de Marcos. O rei resolvera, no seu íntimo, tomá-lo por herdeiro e legar-lhe o trono. Havia tomado o partido de envelhecer sem descendente e renunciara ao casamento. Vários barões que viviam na comitiva de Marcos não tardaram a adivinhar-lhe o intento, que julgavam, sem motivo, inspirado por Tristão. Os mais encarniçados eram quatro barões que a inveja havia lançado contra o bravo e cujo ódio não recuava ante nenhuma traição. Por isso, os chamavam "os barões traidores". O pior destes invejosos era Audret, também sobrinho de Marcos, e que durante muito tempo alimentara a esperança de recolher a sucessão do tio; a sua esperança desenganada tinha-se transformado em furor contra aquele que considerava seu feliz rival. Os outros três traidores chamavam-se Guenelon, Gondoine e Denoalen. Freqüentemente conversavam em segredo sobre o que tomavam por manobras interesseiras de Tristão e diziam entre si: Este homem nefasto é um feiticeiro e uma alma de Satanás. A sua cura é inexplicável por meios naturais, pois o seu ferimento era daqueles a que um homem não escapa. A sua vitória assombrosa sobre o Morholt, a sua misteriosa navegação numa barca sem vela nem remos, eis o que já pressupõe uma intervenção diabólica. Nós o vimos atingido por um ferimento incurável, quase agonizante, e ei-lo agora fresco e ágil, o corpo intacto e o coração arrogante! É necessário que tenha um trato com os espíritos infernais e possua o segredo das artes maléficas. Certamente que as usará um dia contra aqueles que, como nós, o abandonaram no momento do seu infortúnio: mais tarde ou mais cedo, vingar-se-á, se não tomarmos nós a dianteira." Assim, os quatro traidores semeavam a dúvida à volta deles; e aqueles que, como eles, se haviam desinteressado de Tristão quando este estava em perigo de morte temiam pela sua vida. "Se Tristão é um dia nosso senhor legítimo — acrescentavam os traidores —, terá todos os direitos sobre nós. É, pois, necessário que o rei se case.
Um dia dirigiram-se todos juntos à corte e expuseram a Marcos que o interesse do reino e dos homens da Cornualha exigia que ele se casasse sem mais tardar em vista a ter um herdeiro. Se, ainda jovem como era, não desposasse uma mulher que lhe pudesse dar um sucessor, exporia a Cornualha a desordens e a guerras. Alguém poderia, sem direito, pretender reinar na sua terra. "Também — acrescentavam — não vos continuaremos a servir de modo algum se não seguis o nosso conselho." O rei respondeu-lhes: "Senhores, agradeço-vos a amigável intenção, pois quereis aumentar a minha honra e louvor. Para dizer a verdade, nenhumas desordens deveis temer quando da minha morte. Deus deu-nos um bom herdeiro, que Ele o profeta e conserve. Tristão. Enquanto ele viver, ficai sabendo que nenhuma mulher casada trará coroa nesta corte." Marcos acrescentou que esse assunto só a ele dizia respeito e que o rei era livre, como qualquer dos seus vassalos, de contrair casamento ou, se isso lhe convinha mais, de se abster dele. Então os traidores encontraram no próprio Tristão um aliado inesperado: para melhor provar que nunca incitara o tio, por interesse pessoal, a renunciar ao casamento, juntou as suas instâncias às dos inimigos. Tentou persuadir o rei de que este devia procriar um herdeiro legítimo e evitar todas as disputas à volta da sucessão. Marcos, não ousando fazer frente a todos os vassalos, ligados contra ele, quis dar-se tempo para refletir: "Senhores — disselhes —, dai-me tempo para preparar a minha resposta. Vinde ver-me de novo dentro de quarenta dias, e far-vos-ei conhecer a minha decisão."
Quando chegou o dia fixado, o rei estava tomado de preocupações. Sozinho no salão do castelo, prestes a receber os barões, procurava ainda um meio de iludir a sua exigência. Nesse instante, por uma janela aberta sobre o mar, entraram duas andorinhas soltando gritinhos e disputando um longo cabelo louro de mulher que uma delas trazia no bico; depois, bruscamente, assustadas com um gesto do rei, as duas intrusas afastaram-se rapidamente, não sem terem deixado cair na sala o magnífico cabelo, mais fino e mais brilhante que um fio de ouro. Marcos inclinou-se e apanhou-o com precaução; examinou-o longamente, admirou-o e uma brusca iluminação atravessou-lhe o espírito.
Quando Tristão entrou, seguido pelos outros barões, fitou-os um instante com um sorriso malicioso e disse: "Alegrai-vos, senhores; quero seguir o vosso conselho e resolvi, após bem pensar, arranjar mulher. Ficai sabendo que não quero outra que não seja aquela a quem pertence este cabelo de ouro. Uma andorinha vinda do mar trouxe-mo no bico e é um feliz presságio que não quero de modo algum negligenciar." Ao dizer estas palavras, estendia-lhes o cabelo entre os dedos e fazia cintilar no belo fio de ouro um raio de sol.
Os barões sentiram-se gozados e como que injuriados pelo rei: sob a aparência de realizar o seu desejo, designava-lhes por zombaria uma mulher impossível de encontrar. "Este estratagema — diziam entre si — é uma nova artimanha de Tristão para melhor assegurar a herança do tio." Quanto a Tristão, esse não cessava de contemplar o cabelo de ouro, e a sua vista acordava-lhe na alma uma agradável recordação. Entre todas as moças louras que vira, vindas dos países do Norte, nenhuma — tinha a certeza — tinha uns cabelos tão semelhantes a um fio de ouro, a não ser uma única: Isolda, a filha do rei da Irlanda, a que o tratara há pouco tempo, no palácio de seu pai, o rei Gormond, e à qual ensinara a tocar os instrumentos. Enquanto os outros barões continuavam a bradar e a trocar em voz baixa palavras hostis a Tristão, este se voltou para o rei Marcos e disse: "Por Deus, sire, para vos dizer a verdade conheço uma única donzela cujos cabelos de ouro assemelham-se a esse: é Isolda, a loura, a filha única do rei da Irlanda. Bem sabeis como a conheci no seu país, assim como a seu pai e a sua mãe. Entre todas as filhas de rei que me foi dado encontrar, ela é, sem contestação, a mais bela e a mais bem instruída. É excelente no canto e no toque dos instrumentos, e aprendeu com a mãe as virtudes secretas das ervas, das flores e das raízes, de modo que não há melhor médico que esta jovem. Digo-o por eu próprio ter feito a experiência." Marcos respondeu-lhe: "Não ignoras, querido sobrinho, que há séculos a inimizade e o ódio reinam entre a Irlanda e a Cornualha e que eles suscitaram entre os dois povos guerras sangrentas. Se este cabelo de ouro pertence realmente à jovem Isolda, como esperar que o rei Gormond consinta em dar-me a filha em casamento? Se envio mensageiros a pedir a mão de Isolda, receio que seu pai os mate vergonhosamente, sem mesmo se dar ao cuidado de me responder: Tal afronta valer-me-ia zombarias e vergonha."
O senescal Dinas de Lidan interveio então: "Sire, acontece com bastante freqüência reis travarem entre si longas guerras com grande dano e grande perda de homens; depois, rejeitando cólera e ódio, transformam a inimizade em paz e em amor, casando com príncipes, outrora seus inimigos, as suas filhas ou irmãs. Isolda é a única filha do rei Gormond. Se pudéssemos realizar ditosamente esse casamento e essa aliança, as coisas poderiam tomar uma feição tão favorável que talvez vós viésseis a reinar na Irlanda um dia."
O rei respondeu: "Se esse projeto pudesse ser executado com honra para mim, não desejaria outra mulher que Isolda, pois Tristão louvou-me grandemente nela a cortesia, o senso e todas as qualidades convenientes a uma mulher. Pensai, pois, no meio de obtê-la para mim." Dinas continuou: "Sire, ninguém no mundo vo-la pode obter, exceto Tristão, vosso sobrinho: no decurso da sua viagem à aventura, foi pelo rei Gormond recolhido e, se ficou curado do seu terrível ferimento, deve-o certamente à rainha e à sua filha. Se em tal se empenhar, conquistará seguramente a jovem pela astúcia ou pelo valor."
Os traidores ouvem que o senescal Dinas de Lidan propõe enviar Tristão à
Irlanda para pedir em casamento, em nome do rei Marcos, a filha do rei Gormond. Os invejosos ficam perplexos e não sabem que atitude tomar. Gozam secretamente com o fato de que, se Tristão empreender esta nova viagem, mais que aventurosa, junto dos piores inimigos da Cornualha, não voltará nunca mais. No entanto, persegue-os uma inquietação: não irá este diabo de homem, este feiticeiro, uma vez mais ser bem-sucedido contra qualquer esperança humana e voltar triunfante, ornado com um novo prestígio?
Por seu lado, Tristão compreende que, se recusar empreender a busca da jovem, fornece aos traidores um novo pretexto para acusarem-no de cobiçar para si próprio a herança do rei. Então responde com grande senso e de boa vontade: "Sire, não devo recusar esse empreendimento, uma vez que sou o mais bem preparado para ele. Na verdade, conheço a Irlanda e os seus habitantes, conheço o rei, os seus principais barões, a rainha e a jovem Isolda, mas matei o irmão da rainha: se lá vou pedir que a filha vos seja dada e se o rei sabe quem sou, não me deixará regressar vivo. Todavia, porque desejo que possais ter um herdeiro legítimo, quero empreender essa busca e, para aumentar a vossa fama, realizála, se Deus o permitir, na medida das minhas possibilidades. E se, por infelicidade, não puder conquistar Isolda, jamais voltarei à vossa corte." Em seguida acrescentou: "Sire, confiai-me esse cabelo, quero mandá-lo entrelaçar no estofo da minha túnica de orla dourada e tenho a certeza de que o seu brilho se sobreporá ao do metal mais puro. Mandai-me equipar se tal é a vossa vontade, uma bela nau, a fim de poder embarcar com cem rapazes da vossa terra." O rei consentiu-lho de bom grado.
Tristão levou Gorvenal consigo para esta travessia. Como companheiros, escolheu na corte do rei cem jovens vassalos de nobre condição, entre os mais ousados e os mais bravos; arranjou as melhores armas e bons cavalos. A nau ficou bem abastecida de víveres, bebidas, dinheiro; carregaram-na com cereais, peles, farinha-flor, mel e vinho. Acabado o carregamento, vogam para levar a mensagem aos inimigos. Mas Tristão ainda hesita se pedirá a moça ou a atrairá a bordo por meio de qualquer astúcia para raptá-la. Se a pede, arrisca-se a uma recusa brutal; e como raptá-la pela força a um pai tão poderoso? Discute-o com os companheiros, mas nenhum deles o sabe aconselhar; todos gemem por terem sido designados para um empreendimento tão perigoso.
Tristão atravessa o mar da Irlanda em grande dúvida e cuidado. Decide que os seus companheiros e ele far-se-ão passar por mercadores, e que, para agir, esperarão por encontrar um estratagema. Noite e dia, navegaram. Tristão soube que Gormond, o rei da Irlanda, encontrava-se em Weisefort. Lançaram âncora diante do porto: era, para a gente da Cornualha, a terra perigosa por excelência. Tristão enviou dois dos seus companheiros, vestidos com cotas de burel e capas de camelão grosseiro, ao palácio do rei Gormond com a missão de obterem um salvo-conduto para venderem as mercadorias. Os dois mensageiros saudaram o rei cortesmente e disseram-lhe: Sire, somos mercadores e transportamos as nossas mercadorias de terra em terra para ganhar dinheiro. Carregamos o navio na Bretanha e queríamos atingir a Flandres, mas ventos contrários empurraramnos para aqui. Disseram-nos no porto que as mercadorias se vendiam bem neste país. Se obtivermos de vós a autorização para vendermos o nosso vinho, o nosso queijo e os nossos tecidos, ancoraremos a nossa nau e faremos comércio com os vossos súditos. Se o não consentirdes, sire, levantaremos ferro para outro país. O rei respondeu: "Dou-vos permissão e liberdade para traficardes nesta terra em paz e à vontade. Ninguém vos incomodará nem vos fará mal. Encontrareis aqui o melhor acolhimento e sereis livres de partir quando vos aprouver." Os mensageiros agradeceram ao rei, deram-lhe presentes e regressaram à nau. Aí, com os companheiros, passaram o dia a divertir-se, a jogar xadrez e gamão e a tagarelar.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora