XIX Os amantes na floresta

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EI-LOS na floresta de Morois; Isolda esqueceu todos os seus pesares. Para subsistir nesta solidão, longe de qualquer habitação humana, não têm outro recurso além da caça. Havia em Tristão um maravilhoso arqueiro, mas não podia exercer a sua perícia, pois faltavam-lhe o arco e as flechas. Gorvenal procurou tanto nos matagais que encontrou a cabana de um florestal e roubou-lhe um arco de alburno e duas flechas bem emplumadas e afiadas. Então Tristão põe-se a trabalhar e a espreitar toda a espécie de caça. Vai-se pelos bosques, vê um cabrito-montês, ajusta a flecha e atira: o animal é ferido na ilharga, dá um salto e abate-se. Tristão carrega-o aos ombros e volta para junto de Isolda. Enquanto um fogo de madeira seca flameja, começa a construir uma cabana. Com a espada, corta e talha os ramos e junca o solo com várias camadas de folhas. Isolda ajuda-o neste trabalho; em seguida, neste fresco tapete de verdura, Tristão senta-se singelamente com a rainha. Gorvenal, diante da choupana de ramadas, leva achas ao braseirp e assa uma peça de caça à volta de um ramo de aveleira. Assim sustentam a vida, mas o sal, o pão e o leite fazem-lhes muita falta. A rainha sente-se subitamente cansada de todas as provações que atravessou; o sono apodera-se dela e adormece, a cabeça apoiada no braço de Tristão. Viveram assim muito tempo, com duro frio, sol ardente, chuva e vento, na profunda floresta.
Tristão deixara em Tintagel um belo cão de corrida, ligeiro e vivo, que atendia pelo nome de Husdent. O rei mandara-o fechar numa sala do torreão, mas ele não queria comer nem pão, nem papa, nada do que lhe davam; latia e raspava com a pata, os olhos lacrimejantes, de tal modo que as pessoas se apiedaram: "Pobre Husdent! Nunca mais encontraremos um cão de caça como este, tão vivo e que manifeste tal dor pelo dono! Salomão disse com justa razão que o seu amigo era o galgo: temos a prova em ti, pois não queres tocar em comida desde que o teu dono desapareceu!" "Creio que ele enlanguesce por causa do dono" — disse Marcos. Vendo que o rei estava comovido, um dos fiéis disse-lhe: "Sire, mandai-o soltar, senão enraivece e era uma pena num animal tão belo e fiel. Quando estiver em liberdade, veremos se é pelo dono que geme."
Marcos aceitou este conselho e mandou um escudeiro desprender o cão. Todos os assistentes se foram instalar em bancos ou assentos elevados, pois queriam evitar as mordeduras do cão, no caso de estar raivoso. Mas Husdent não tinha a menor intenção de lhes fazer mal: apenas se sentiu solto, desatou a correr em todos os sentidos e não perdeu mais tempo. Transpôs a porta da sala e dirigiu-se para a habitação onde costumava encontrar Tristão. O rei e os outros seguem-no. Não encontrando o dono, o cão gane, late muitas vezes e manifesta uma grande dor; dá várias voltas farejando o chão e encontra o rasto de Tristão. De todos os passos que o bravo fizera quando foi preso e devia ser queimado, não há um único que o cão não faça. O faro condu-lo à masmorra onde Tristão foi encarcerado e depois à capela donde saltou para a falésia. Aí, Husdent salta para o altar ladrando e atira-se pelo vitral como o dono fizera. Magoou-se na perna ao cair no patamar, mas não pára; segue a pista pelo areal e só se detém na orla florida do bosque onde Tristão se emboscara; em seguida, entranha-se no matagal sob as grandes árvores. Os barões dizem ao rei: "Deixemo-lo agora, pois poderia conduzir-nos a locais secre¬tos donde seria difícil regressar."
Husdent corre sob a ramagem e esta ecoa tão fortemente os seus latidos que o barulho chega aos ouvidos de Tristão. O bravo levanta-se e grita a Gorvenal: "Escuta, é Husdent que vem aí! Certamente que o rei vem com ele!" Tristão pega no arco e estica-o. Mas o cão desemboca sozinho das moitas; imaginem as carícias que fez a Tristão: abana a cabeça, agita a cauda, lambe-lhe as mãos e rola a seus pés. É para todos uma grande satisfação. Do dono, voa até Isolda, depois para Gorvenal e mesmo para os dois cavalos. Mas sempre, em Morois, à alegria se mistura a inquietação: "Ah, Deus — diz Tristão —, por que infelicidade me soube Husdent encontrar? Que fazer neste bosque de um cão tão barulhento? Os seus latidos trair-nos-ão e a gente do rei prender-nos-á. Mais vale matá-lo antes que os seus latidos nos descubram. Fará a nossa infelicidade... Mas, no entanto, não o posso matar pela sua demasiada fidelidade!" Isolda segura Husdent e mantém-no ao pés de si: "Piedade para ele! — pede. — Se o cão ladra ao perseguir a caça, é tanto por adestramento como por natureza. Ouvi outrora dizer que um florestal galês possuía um galgo: ensinara-o tão bem que seguia o veado magoado a saltar, mas sem nunca ladrar nem fazer barulho. Amigo Tristão, seria uma grande alegria se conseguíssemos, à custa de algum esforço, que Husdent abandonasse o latido." Tristão ficou imóvel e refletiu; apiedou-se do animal e disse: "Bela, falaste verdade: gastarei a minha aplicação e paciência a fazê-lo agarrar a caça sem latir."
Tristão vai caçar ao arco na floresta. Era hábil; atira uma flecha a um gamo: o sangue corre, o cão late, o gamo ferido foge aos saltos, Husdent ladra muito alto. Tristão bate-lhe com força. O cão pára ao pé do dono, cessa de latir, abandona a perseguição; levanta a cabeça para fitar Tristão, não sabe que fazer, não ousa latir, perde a pista. Tristão mete o cão entre as pernas, com pequenas pauladas no solo indica-lhe a pista; Husdent quer latir novamente; Tristão está disposto a instruí-lo. Antes de o primeiro mês ter acabado, o cão estava perfeitamente adestrado a caçar em silêncio: na erva, como na neve ou no gelo, nunca abandona a caça, por mais rápida e ardente que seja. Agora o cão lhes é de grande auxílio, presta-lhes serviços sem preço. Se apanha no bosque um cabritomontês ou um gamo, dissimula-o cuidadosamente, cobrindo-o com rama, e se o agarra no meio da charneca, amontoa erva sobre o corpo do animal, vai buscar o dono e o conduz até à presa.
Tristão viveu com Isolda dois anos na floresta; aí sofreram muitas aflições e medos. Durante os primeiros meses, não ousavam ficar nunca no mesmo lugar: onde acordavam nunca mais adormeciam. Sabiam muito bem que o rei os procurava e perseguia. O pão e o sal faziam-lhes muita falta: viviam unicamente de bagas selvagens e da carne dos animais que Tristão matava. Não é para admirar que o rosto mude de cor, que as roupas se gastem e rasguem nas silvas e espinheiros. Sofrem igualmente os dois, pois cada um sente as dores do outro. A bela Isolda tem muito medo que Tristão se arrependa; por seu lado, Tristão teme que a amante esteja ressentida contra ele e lamente a loucura cometida. Foi assim que os fugitivos dissimularam-se e desapareceram no silêncio do bosque cerrado. Haviam-lhes perdido o rasto e os traidores nada mais podiam contra eles. Desde que Tristão vadiava livremente, sentiam a vida ameaçada. Mais uma vez o maldito anão ofereceu-se para ajudá-los, mas foi para sua infelicidade. Os barões inquietavam-se porque notavam que ele tinha com o rei conciliábulos dos quais eram excluídos. Às suas perguntas inquietas, respondia com palavras dúbias, como se guardasse um segredo. Todavia, num dia em que o surpreenderam embriagado, atormentaram-no tanto que conseguiram fazê-lo falar: "Possuo — disse — um segredo que não posso trair sem perjurar em relação ao rei. Mas como sois meus amigos, não vos devo esconder nada. Sabereis tudo se me acompanhardes ao Vau Aventuroso; aí se encontra um fosso que abriga uma moita de pilriteiros. O segredo que prometi ao rei não confiar a nenhum ouvido humano, confiei-o, para melhor o enterrar, ao fosso profundo, mas ele chegou à moita de pilriteiros que domina o buraco: quando sopra o vento, o pilriteiro, ao ressoar, murmura o segredo que recolheu."
Os barões foram até lá com Frocin, que desapareceu no buraco até aos ombros. Os outros olhavam, pasmados, e não ouviam nada. De repente, levantou-se uma brisa que sacudiu a moita de pilriteiros; o ruído das folhas levou até aos barões, com um ligeiro murmúrio, esta confidência: "O rei Marcos tem orelhas de cava¬lo." Algum tempo depois, ao saírem de um festim, os barões, animados com o vinho, disseram em tom de brincadeira: "Rei, sabemos o que nos escondes." "Que vos escondo, então?" Um dos barões aproximou-se dele e sussurrou "O rei Marcos tem orelhas de cavalo!" "Por Deus —respondeu Marcos rebentando a rir —, é verdade que tenho orelhas de cavalo! Guardei o segredo até estes últimos tempos, mas foi descoberto contra minha vontade pelos artifícios de um bruxo maldito, esse execrável anão que não sabe estar calado.
Quero acabar com ele."
Mal avistou o anão, Marcos desembainhou a espada e cortou-lhe a cabeça rente à corcunda: muitas pessoas se regozijaram com isso por causa do mal que causara a Tristão e a Isolda — os amantes tinham um inimigo a menos.

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