VIII Isolda conquistada para o rei Marcos

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NO DIA SEGUINTE, quando da assembléia, grande foi a surpresa dos irlandeses com o aspecto daqueles senhores, desconhecidos de todos, magníficos e silenciosos. Um a um entraram, sentaram-se na mesma fila, vestidos de cendal e púrpura. Os irlandeses diziam entre si: "Quem são estes homens que nunca vimos? Donde vêm estes estrangeiros?" Mas os cem homens de armas calavamse e não se mexiam dos lugares. Isolda e a mãe entraram por sua vez, levando pela mão o seu protegido. Ao verem-no, todos os senhores cornualhenses levantaram-se para saudar e prestar honras ao seu chefe.
Logo de início, Isolda fez seu pai renovar o juramento de perdoar no desconhecido, se este triunfasse sobre o senescal, todos os seus delitos antigos, quaisquer que fossem. Depois, sem outro preâmbulo, revelou que o seu campeão era Tristão de Leônis, o assassino do Morholt. A despeito dos clamores hostis que provocou esta nova, o rei considerou-se como que ligado pela sua promessa e concedeu a Tristão, por amor de sua filha, a remissão do assassínio do Morholt; a própria rainha associou-se a este perdão. Isolda exclamou: "Rei, beija este homem na boca, como me prometeste." O rei beijou-o na boca e os rumores acalmaram-se.
O senescal foi então introduzido; apresentou ao rei a cabeça do dragão e ofereceu-se para provar em batalha o fundamento da sua pretensão à recompensa prometida. Então Tristão ergueu-se contra ele e disse em voz alta: "Olha, traidor, esta língua: quando matei o dragão, cortei-a à cabeça que exibes!" Em seguida, voltou-se para os barões reunidos: "Senhores, se não me acreditais, pegai nessa cabeça e espreitai-lhe a garganta; a língua já aí se não encontra. Depois disto, se este homem não quiser confessar que mente, que pegue nas armas e se prepare para combater contra mim! Fornecer-lhe-ei a prova da sua mentira." O rei mandou que lhe trouxessem a cabeça do monstro, e todos viram que a língua lhe havia sido arrancada. Ao ver isto, o senescal perturbou-se; perdeu o sangue frio e cobriu-se de embaraço enquanto o apupavam em toda a sala. De cabeça baixa, confessou a sua perfídia; nesse mesmo instante, o rei retirou-lhe o cargo e expulsou-o para sempre da corte.
Quando se fez de novo silêncio, Tristão tomou a palavra diante de todos: "Senhores irlandeses, é verdade que matei o Morholt em combate leal: ele terme-ia podido matar, mas a sorte das armas foi-me favorável. Não tenho, pois, razão para me desculpar perante vós. Mas atravessei o mar para vos oferecer uma bela compensação: pus o meu corpo em perigo de morte e libertei-vos do monstro que devastava as vossas terras e cidades. Eis que conquistei Isolda, a bela, e que a vou receber como recompensa das mãos do rei seu pai. Tendo-a conquistado, levá-la-ei na minha nau. Mas ficai sabendo, senhores irlandeses, que não serei eu quem a desposará e que a filha do rei Gormond nunca será a mulher daquele que venceu e matou o seu tio, o Morholt. De modo algum porque faça pouco caso de uma tão grande honra, a de me tornar o genro do rei Gormond! Se não aceito Isolda, a loura, como mulher, o que poderia fazer como vencedor do dragão, é porque reconheci nela a bela dos cabelos de ouro, de quem uma andorinha levou um cabelo até ao castelo do rei Marcos, em Tintagel, e que o meu senhor decidiu desposar. Tomei o caminho do mar unicamente para procurar a bela dos cabelos de ouro e jurei, se a encontrasse, levá-la ao rei Marcos, que não quer outra mulher. Tenho, pois, de cumprir o meu juramento, senhores irlandeses, e não faltarei de modo nenhum. A fim de pelas terras da Irlanda e da Cornualha se espalhar já não o ódio, mas a amizade, Isolda reinará sobre as mais ricas terras de Inglaterra com o rei seu marido; não existe no mundo melhor país nem homem mais cortês. Vedes aqui cem vassalos de alta linhagem prontos a jurar sobre as relíquias dos santos que a mensagem do rei Marcos é de paz e amizade, que o seu desejo é honrar Isolda como sua mulher e que todos os homens da Cornualha servi-la-ão como a sua senhora e rainha." Trouxeram com grande alegria as relíquias dos santos em relicários de ourivesaria. Os cem homens da Cornualha juraram, a mão erguida sobre os santos corpos, que o rei Marcos desposaria Isolda, a loura, em legítimo casamento e que eles ficavam todos por fiadores em seu nome. O rei Gormond pegou na filha pela mão e perguntou a Tristão se este a conduziria lealmente até ao rei Marcos. Perante os seus cem guerreiros e perante os barões da Irlanda, Tristão jurou-o.
Ora, tal é o humor inconstante das mulheres: a jovem Isolda, cujos olhos irradiavam a mais viva alegria quando o senescal deixava a sala sob as injúrias dos assistentes, mostrava agora um rosto entristecido e de traços endurecidos pela cólera. O seu coração fremia de vergonha e de angústia, pois que Tristão mal a havia libertado do senescal covarde logo menosprezava casar-se com ela para levá-la na sua nau, a fim de entregá-la a um velho rei do qual nada sabia. Por certo que o belo conto do cabelo de ouro não passava de uma mentira inventada a contento para justificar o seu desprezo. Mas o rei Gormond, sem se deixar afastar do seu desígnio pelo furor da filha, pousou solenemente a mão direita da moça na mão direita de Tristão, e este a segurou em sinal de que se assenhoreava dela em nome do rei Marcos: "Velarei sem cessar por ela, até ao dia em que a tiver entregue, como fiel depositário, ao seu real marido." Desde então, Isolda passou a ser considerada por todos como a mulher do rei Marcos e começou a usar o véu, que era o sinal das mulheres casadas.
Durante a semana seguinte, a rainha da Irlanda, ajudada pela fiel Brangia, preparou o enxoval da filha em vista à grande viagem nupcial que a deveria separar dela para sempre. Decidiu que a jovem Isolda seria acompanhada por Brangia e por Périnis, o lacaio afeiçoado à sua pessoa. Isolda não participava nos preparativos da viagem e da longa travessia: triste e silenciosa, recusava qualquer conversa com Tristão, por quem se julgava ofendida e desprezada. Vendo o humor sombrio da filha, a rainha temia que ela fosse infeliz no castelo de Tintagel com um marido que só aceitara constrangida e forçada pela vontade do pai. Veio-lhe então à idéia recorrer à magia para assegurar a união dos dois futuros esposos. Preparou uma poção poderosa com ervas e flores que ela própria colheu na floresta e nas montanhas, a certas horas propícias do dia e da noite; misturando-as com vinho, obteve uma tintura ervosa, que era um filtro de amor capaz de fazer nascer a paixão no homem e na mulher que o bebessem. Mas empregou tais ritos e tais fórmulas secretas que conferiu a esse vinho ervoso um poder inaudito: aquele e aquela que partilhassem essa poção deveriam amarse com todas as suas forças durante um período de três anos, a tal ponto que não poderiam suportar estar afastados um do outro mais de um dia sem sofrer gravemente e mais de uma semana sem se arriscarem a morrer. Depois, entregou a Brangia o frasco, cuidadosamente selado com cera, que continha o filtro do amor: "Quero que acompanhes a minha filha Isolda à Cornualha, tu, a quem eduquei com ela e que a serviste fielmente durante toda a sua infância: ficarás junto dela no castelo do rei Marcos, em Tintagel, e continuarás a servi-la enquanto viver. E como prova da minha estima por ti, Brangia, vou confiar-te um segredo e uma missão: toma este frasco de vinho ervoso e conserva-o escondido num cofre sem conhecimento de Isolda... É uma poção de amor que eu própria compus para a felicidade de minha filha e do seu futuro marido: pega nele e não fales disso a ninguém. Na noite de núpcias, quando os dois esposos tiverem entrado no leito nupcial, irás ao quarto e apresentarás a cada um uma taça deste vinho ervoso para que o bebam ao mesmo tempo e de um só trago. E vela bem para que ninguém beba deste filtro, pois grandes males daí poderiam advir!"
Brangia respondeu: "Senhora, será feito como ordenais."
Tristão pedira ao rei Gormond uma nau irlandesa para escoltar a sua até Tintagel: foi nessa nau que Isolda tomou lugar com as suas servas, e uma vasta tenda foi erguida para elas na ponte do navio. Entre os homens, só Tristão aí tinha acesso. Quando a nau ficou pronta, todos se dirigiram para o porto, o rei e a rainha acompanharam a filha até lá e, quando o vento se levantou, os dois navios singraram juntos para o alto mar. Na margem, muitos homens e mulheres, nascidos no mesmo país de Isolda, choravam ao vê-la afastar-se, pois amavamna pela sua graça e beleza.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora