XV Marcos empoleirado no pinheiro grande

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AUDRET e os barões traidores viam bem que Isolda recuperara a alegria e adivinhavam sem esforço que achara maneira de rever Tristão. Mas era em vão que espiavam as idas e vindas da rainha para descobrir o segredo. Brangia montava tão bem a guarda que se fatigavam sem lucro algum. O duque Audret propôs aos cúmplices empregarem outra tática: "Conheceis, senhores, Frocin, o anão corcunda: conhece a arte da magia, lê o futuro nos sete planetas e no curso das estrelas. Ele, que sabe descobrir as mais secretas coisas, poderá sem dúvida revelar-nos as astúcias de Isolda, a loura."
O aleijão, que era mau e invejava a felicidade dos amantes, não se fez rogado. Observando o curso de Orion e de Lúcifer, descobriu o lugar e a hora dos encontros noturnos dos dois, na fonte do pomar. O duque Audret levou o anão a Marcos e arranjou-lhe uma entrevista com o rei: Sire — disse o feiticeiro —, fazei constar que partireis esta noite para a floresta para caçar durante sete dias. Antes de soar a meia-noite, regressai bruscamente a Tintagel e eu conduzir-vosei, no pomar, a um lugar donde podereis ver o encontro de Tristão e da rainha e ouvir-lhes as palavras. Que eu seja enforcado se ficardes decepcionado com a espera!" O rei seguiu o conselho do anão, mas contra vontade. Chegada a noite, deixou os monteiros nos bosques, montou o anão na garupa e regressou a Tintagel. Sem hesitar, Froncin conduziu-o ao pinheiro grande: "Rei, deveis agora subir para um ramo desta árvore e dissimularde-vos para melhor espiardes a vossa mulher e o vosso sobrinho. Se me acreditais, levai convosco o arco e as flechas: poderão servir-vos quando estiverdes esclarecido sobre a sua conduta. Mantende-vos quieto: não tereis de esperar muito.
O anão dissera a verdade: o rei não esperou nada. Do alto da árvore, Marcos viu Tristão transpor a paliçada e saltar para o pomar; avançou direto à fonte e deitou aí as aparas gravadas com letras, que não tardaram a correr, ligeiras, pelo canal através do jardim e para o quarto das mulheres. Mas Tristão, inclinando-se sobre o tanque de mármore para atirar outras, viu subitamente, à claridade da Lua, o rosto do tio que se refletia, enquadrado pela folhagem, no espelho de água tranqüila. Observando mais de perto, distinguiu também, entre os ramos, o arco, já armado com uma flecha, que o rei segurava na mão. Ah! Se pudesse reter as aparas na sua fuga! Mas não! No quarto das mulheres, Isolda espreita a sua vinda e em breve as verá deslizar no fio de água. Eis que transpõe a porta do quarto e se dirige para o pomar, ágil e, no entanto, prudente, olhando para todos os lados, a fim de ver se não a espionam. Ora, Tristão, nessa noite, não vem ao seu encontro como das outras vezes e nem sequer a fita; está imóvel, os olhos fixos na água do tanque como que para lhe fazer compreender que há ali qualquer coisa insólita. Esta estranha atitude não deixa de surpreender Isolda, que também volta o olhar para a superfície da água e não tem dificuldade em aí descobrir por sua vez o reflexo do rosto inquieto e atormentado do marido. Lembra-se então de um ardil bem feminino, pois livra-se de levantar os olhos para os ramos da árvore e, a fim de tirar Tristão de apuros, dispõe-se a falar em primeiro lugar: "Senhor Tristão, que loucura vos deu para me chamardes a esta hora? Em nome Daquele que fez o Céu e a Terra, não me chameis mais, nem de dia nem de noite, pois, dessa vez, não virei. Todavia vós bem o sabeis: o rei julga que eu vos amo loucamente. Os barões traidores fazem-no crer que vós, que sois a defesa da sua honra, o ridicularizais sem vergonha. Em verdade, preferiria ser queimada viva e que a minha cinza fosse dispersa ao vento a amar outro homem que não seja o meu senhor. Não, Tristão, não me chameis mais sob nenhum pretexto: não ousaria nem poderia vir; se o rei soubesse da nossa entrevista desta noite, condenar-meia à morte esquartejada por quatro cavalos. Por certo que me sois caro, porque sois seu sobrinho. Aprendi com a minha mãe que devia amar os parentes de meu marido: observo esse preceito. E penso que uma mulher não amaria verdadeiramente o seu senhor se não amasse igualmente os seus parentes e os seus próximos aliados. Mas vou-me embora que estou a demorar demasiado! "Senhora, por amor de Deus, escutai-me! Em boa fé, por várias vezes tentei encontrar-vos. Desde que fui banido da corte, não sei onde vos falar. Sofro grandemente com as suspeitas que meu tio faz pesar sobre mim: por que dará fé a tais calúnias? Por que acreditará nas mentiras daquelas pessoas que vimos mudas e trêmulas perante o desafio do Morholt? Fazei-me favor, peço-vos, de me justificar vós mesma junto de vosso marido!" "Por Deus, senhor, que me pedis? Convencê-lo da vossa lealdade? Obter-vos o seu perdão? Isso seria provocar, em vão, a cólera do rei! No entanto, ficai sabendo, belo senhor, que, se ele vos perdoasse e esquecesse a cólera, ficaria cheia de alegria. Mas vou indo, pois tenho medo que alguém vos tenha visto chegar."
Tristão retém ainda a rainha e suplica-lhe que interceda por ele junto de Marcos: "Já que o rei me odeia tanto, partirei. Mas obtei-me pelo menos com que comprar as minhas armas e o cavalo, que tive de empenhar a fim de poder subsistir." "Por Deus, Tristão, admiro-me que ouseis fazer-me semelhante pedido. Quereis então perder-me?" E afasta-se, orgulhosa e digna. Tristão, fingindo uma viva emoção e como que cambaleando, apóia-se à escadaria de mármore e diz alto: "Ah! Deus, nunca pensei um dia sofrer tal perda e exilar-me em tão grande pobreza. Ai de mim! Vou partir sem armas nem cavalo, pois empenhei o arnês e não o posso resgatar. Deus, afastaste-te de mim! Quando estiver em terra estrangeira, se ouvir dizer que um rei procura homens a soldo para uma guerra, não ousarei pronunciar uma palavra: um homem nu não tem nenhuma razão para falar. Ah, meu tio, é preciso que me conheças muito mal para desconfiares assim de traição! Atribuis-me uma atitude que é o oposto dos meus sentimentos." O rei, nos ramos da árvore, regozija-se ingenuamente com a fidelidade de Isolda e a lealdade de Tristão; irrita-se contra os delatores: "Desta vez — pensa —, vejo bem que o anão me logrou: foi para minha maior confusão que me mandou subir à árvore. Mentiu-me acerca do meu sobrinho; por isso o mandarei enforcar e também por ter-me feito conceber aversão a minha mulher. Agi como um louco, mas aquele que me levou a isso não esperará muito pelo castigo. Se conseguir apanhar esse anão odioso, fá-lo-ei acabar os seus dias no fogo." Repete para si mesmo que tem fé na mulher: de futuro recusar-se-á a acreditar nos que a tentarem difamar. Nunca retirará a confiança a Tristão e a Isolda: deixá-los-á de novo ir e vir juntos no quarto real à vontade.
De retorno ao castelo, a rainha narra a aventura a Brangia e como, por meio de uma bela astúcia, escapou à armadilha que lhe fora armada: "Bela amiga, quem me dera que nos tivesses ouvido, a Tristão e a mim, queixarmo-nos e lamentarmo-nos à porfia! Por um triz que o rei não se deu conta da verdade. Saíme verdadeiramente bem deste mau passo!" Quando Brangia a ouviu, não lhe poupou a admiração: "Deus, que nunca enganou, concedeu-vos uma grande graça ao permitir-vos chegar ao termo da entrevista sem terdes dito uma única palavra que vos pudesse comprometer. Deus realizou um grande milagre convosco: agiu como o verdadeiro Pai, pois preocupa-se em não fazer mal àque¬les que são bons e leais."
No dia seguinte, de manhã, Marcos quis fazer desaparecer as últimas inquietações acerca da rainha. Penetrou no quarto de Isolda, que sentiu grande emoção: "Sire, em nome de Deus, donde vindes? Tendes algum assunto premente, para virdes assim sozinho?" "Senhora, é a vós que venho falar e perguntar uma coisa; não me escondais, pois, a verdade, porque é a ela que eu quero conhecer." "Sire, nunca em dias da vida vos menti: mesmo que tivesse de morrer aqui, diria a verdade toda e inteira, não mentiria numa única palavra." "Então, desde há quanto tempo não vedes Tristão?" "Sire, não me ides acreditar, mas eis o que se passou: vi-o esta noite mesmo e falei-lhe sob o pinheiro que abriga a escadaria de mármore. Sim, senhor, vi o vosso sobrinho no lugar que disse. Mandara-me dizer para aí me encontrar com ele: a minha honra obrigavame a satisfazer o desejo daquele por quem me tornei rainha da Cornualha, esse Tristão que amo unicamente porque é vosso sobrinho. De preferência a voltar para o exílio, desejava que o reconciliasse convosco; recusei-me a fazê-lo com medo desses traidores que vos fazem crer no mal. Disse-lhe que partisse e nunca mais me procurasse, pois não podia fazer nada por ele, nem devolver-lhe a vossa amizade, nem dar-lhe com que resgatar o arnês que empenhara." O rei sabe perfeitamente que ela falou verdade; cem vezes a beija e abraça. Declara que lhes devolve a confiança para sempre, a ela e a Tristão. Confessa-lhe que assistiu à entrevista noturna, empoleirado nos ramos do pinheiro grande. "Sire, estáveis realmente no pinheiro?" "Sim, senhora, por São Martinho, não houve uma única palavra que me escapasse, fosse em voz alta ou baixa. Quando ouvi Tristão dizer que empenhara o cavalo e o arnês e que não tinha sequer com que os resgatar, apoderou-se de mim tal piedade que quase caí da árvore. Ouvi quando vos recusastes a pagar-lhe o penhor e vi que não vos aproximastes um do outro. Sorri de contentamento no cimo da árvore." "Sire, o que contais é-me de grande reconforto. Agora sabeis com certeza que a ocasião era propícia para nos beijarmos e abraçarmos, se nos amássemos com amor culpado. Mas em nenhum momento o vistes aproximar-se de mim, ter uma atitude inconveniente ou abraçar-me." "Por Deus, não — respondeu o rei. — Sabeis, franca e honrada dama, por que me embosquei naquela árvore? Foi Frocin, o anão corcunda, quem mo aconselhou: o vil mentiroso pretendia ter lido nas estréias que vós tínheis, nessa noite, um encontro amoroso com Tristão, na fonte do pomar. Juroume que vos apanharia aos dois em flagrante, contanto que consentisse em espiarvos do alto do pinheiro grande."
Marcos volta-se então para Brangia: "Moça, vai buscar o meu sobrinho à casa do hospedeiro que lhe dá asilo. Se ele pretextar seja o que for e não quiser escutarte, diz-lhe que eu lhe ordeno que me venha ver." Brangia, a astuta, não resiste à tentação de se divertir também com a credulidade do rei Marcos e, para afastar qualquer suspeita de cumplicidade com os amantes, responde: Sire, Tristão odeia-me! Sem razão alguma, Deus o sabe, diz que por minha culpa que se pôs de mal convosco. Irei, no entanto, pois, por amor de vós, poupar-me-á e não me fará mal algum. Sire, em nome de Deus, reconciliai-me com ele quando chegar." Olha a pérfida: contava propositadamente histórias e queixava-se sem motivo para melhor enganar o rei Rindo, corre para a porta e sai.Uma hora depois, Tristão apresentou-se diante de Marcos, que lhe devolveu toda a confiança: autorizou-o a dormir de novo, como os outros fiéis, no quarto do rei. Entretanto, numa clareira da floresta, o anão Frocin interrogava o curso das estrelas para conhecer o resultado do estratagema que aconselhara. Leu no céu que a rainha e Tristão haviam escapado pela astúcia à armadilha que lhes fora armada e que haviam, mais uma vez, acalmado as suspeitas do rei. Leu também que Marcos voltara o furor contra ele e que prometera matá-lo para vingar-se do papel humilhante que o infame feiticeiro o fizera representar. O anão, no mesmo instante, ficou negro de medo e de vergonha; tomado de pânico, fugiu sem parar para a terra de Gales.

Lenda Medieval:Tristão e IsoldaOnde histórias criam vida. Descubra agora