Capítulo 3

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           Entrei no banheiro como me foi instruído. De certo que essa não era uma cabana qualquer no acampamento onde os guerreiros habitavam, se não fosse a melhor dali, era uma das. Com a banheira já cheia, adentrei na mesma e lavei cada parte imunda do meu corpo. Minutos se passaram até que eu me sentisse completamente limpa.

              Me enrolei na toalha que estava pendurada e caminhei até a pia. Dando uma olhada no espelho, percebi que havia uma grotesca mancha roxa a baixo do meu olho direito, tinham cortes por todo meu rosto, e um bem profundo no lado esquerdo do mesmo. O nariz pelo menos estava no lugar. Fiquei analisando o meu reflexo mais por alguns estantes, apoiei as mãos na pia e suspirei. Os traços suaves que viera da minha mão continuavam ali, mas agora não possuíam mais o encanto de antes. Assim como o formato dos olhos, que tinham passado de um violeta brilhante para algo desbotado, sem vida. Meu cabelo necessitava de um corte urgente. Peguei a regata com a qual fugira e terminei de rasga-la. Usando uma tira de pano, amarrei os cabelos em um rabo de cavalo bem no alto da cabeça, e fiz uma trança amarrando a ponta com outra tira.

               Alcancei as roupas que, creio que Cecilia, havia deixado para mim. Calça, blusa e botas pretas. Passei a blusa pela cabeça e a mesma acomodou as asas por meio dos botões embutidos. Sorri com aquele pequeno detalhe. Terminei de me vestir e respirei fundo ao sair do banheiro e ir em direção aonde o mestre espião me aguardava.

                Segui no corredor como Cecilia explicou. A direita, após a porta do quarto no qual tinha acordado, havia uma pequena e aconchegante cozinha. Continuei o caminho e logo o corredor se expandiu em dois cômodos. A direita a sala de jantar e a esquerda uma sala de estar, com dois sofás, uma poltrona e uma lareira. Havia também uma escada que, creio eu, levaria a outros quartos, já que guerreiros illyrianos não precisavam muito mais do que um lugar para treinar, comer, dormir e trepar. E esse último eles faziam em qualquer lugar.

                  Pela janela consegui avistar Cecilia conversando com um macho, ele estava de costa para mim impossibilitando que conseguisse avistar o seu rosto. Envolta do par de asas elegantemente fechadas as costas havia, o que seria aquilo? Sombras? Parecia que sombras dançavam na ponta de suas asas. Ele acenou com a cabeça, como se tivesse se despedindo. Com esse ato fui em direção ao sofá, sentei e aguarde.

                   A porta rangeu no momento que foi aberta, uma brisa agradável adentrou o chalé e o macho mais lindo que eu já vira passou pelo arco de madeira. No momento que nossos olhares se encontraram, um calafrio correu pela minha espinha, meu coração começou a bombear mais rápido, e a comida que tinha ingerido se tornou chumbo no meu estomago.

                  Ele possuía uma beleza clássica e elegante, pele bronzeada e olhos cor de amêndoa. As asas estavam recolhidas contra o corpo poderoso e musculoso, o qual estava revestido em uma armadura illyriana completa. Uma espada longa estava presa ao longo da sua coluna e uma faca de caça com cabo de obsidiana estava embainhada em sua coxa. Sombras envolviam seu pescoço e as pontas das asas, como se sussurrassem algo para ele. Percebi então que ele possuía sete sifões, sete. Sabia que illyrianos os usavam para dá uma direção ao poder cru, mas até então só havia ouvido falar de um que portava mais de três. Cautela era o que eu deveria ter a cada momento naquela conversa.

— Bem-vinda ao acampamento Refugio do Vento. Sou Azriel, mestre espião, e também quem a encontrou. — Proferiu com a voz baixa, porém firme e fria como a noite.

Não era burra, sabia que ele não estava ali para me fazer sentir bem-vinda ou mostrar o acampamento. Havia algo que ele queria de mim, informações, e não sabia até que ponto poderia falar sem complicar ainda mais as coisas.

— Obrigada. Sou Ray. — Foi tudo que disse sem me dá o trabalho de levantar. Nenhum vestígio de alteração passou em sua face. Era como granizo, impossível descrever.

               Quase sem emitir som, ele fora andando até a poltrona e a arrastou para que ficasse alguns centímetros a minha frente. Algo se remexia dentro de mim, exigindo uma aproximação com o macho a minha frente. O que estava acontecendo? A única explicação é que minha magia estava começando a voltar aos poucos e tentava me alertar aos poderes e dons do mestre espião. Sentado com a postura ereta e os olhos focados em mim, falou:

— Há algum tempo venho tentando obter informações sobre as rainhas humanas, mas nem eu e nem meus homens conseguiu sequer ouvir um sussurro em resposta. — Se inclinou um pouco para frente, sem nem ao menos piscar. — Creio que você me contará o motivo pelo qual estava fugindo de guardas humanos, deixando uma trilha de sangue e morte desde o palácio.

                As sombras dispersaram um pouco, deixando o rosto dele mais visível. Estremeci. As feições por mais belas e elegantes que fossem, eram duras e frias. Sabia que caso ele acreditasse que eu apresentava algum tipo de ameaça, não hesitaria nem por um segundo antes de enfiar a lamina de sua coxa em meu coração. Precisava pensar em algo para dizer, e rápido.

— Creio que todos os prisioneiros fazem o que está ao seu alcance para obter a liberdade.

— Então era isso que você era? Uma prisioneira?

— O que mais uma illyriana estaria fazendo em terras humanas?

— Não esqueça de quem faz as perguntas aqui. — Sua expressão sequer vacilou durante aquela guerra de palavras. Como uma lâmina afiada ele se levantou e começou a rodear o sofá no qual eu estava sentada. — Como ocorreu sua prisão?

— Estava apagada durante a maior parte. Tudo que eu me lembro era que estava no acampamento com as outras curandeiras e então ouvi gritos, depois disso só há escuridão.

Mentirosa. Mentirosa. Mentirosa. Tentava controlar o máximo das batidas do meu coração, sabia que ele notaria até a mínima mudança que ocorresse durante a minha fala.

— Então os guerreiros de hybern a entregaram para as rainhas humanas por livre e espontânea vontade? — Dei de ombros antes de proferir:

— Talvez um meio de se redimir por seu líder ter falhado com elas. — Em um silêncio quase mortal ele parou bem atrás de onde eu estava sentada. Consegui senti sua respiração em minha orelha quando disse:

— Vejo que as informações chegam mesmo nos lugares mais isolados das montanhas. — De novo, um maldito arrepio passou por toda minha espinha ao sentir o calor que aquele corpo emanava, mas consegui manter a respiração controlada quando, por fim, respondi:

— Passei um ano naquele inferno, sendo castigada e torturada apenas por estar no lugar errado na hora errada. Não pense que não me atentei a qualquer mísera informação que fosse me ser último para sair daquele local.

Pelo menos essa parte não era mentira.

— Pode ficar aqui até se curar. — A voz baixa e mortal. Então aquele calor desapareceu, deixando um vazio no ar. Ele apareceu logo a porta. Atravessou. O desgraçado tinha atravessado não porque precisava, mas para me mostrar a extensão de seu poder. — Entretanto, saiba que há mais pessoas nesse chalé. — E com a mesma expressão que tinha entrado, saiu pela porta.

Não me deixei iludir nem por um segundo crendo que ele tinha acreditado em qualquer palavra que eu tinha dito.

Corte de sombras e esperançaOnde histórias criam vida. Descubra agora