Capítulo 4

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     Acordei com o primeiro raiar do sol entrando pela janela. Me sentei devagar na cama e notei que meu corpo ainda estava dolorido por causa da batalhe que tinha contra os soldados humanos, mas meus machucados estavam sarando mais rápido do que eu esperava sem minha magia.

     Aliais, agora podia sentir sua essência voltando aos poucos. Talvez em alguns dias tivesse o suficiente para atravessar até em casa, ou teria que esperar até que minhas asas ficassem boas para que pudesse ir voando.

     Repassei o que ocorrerá no dia anterior em minha mente. Após o mestre espião sair não ousei colocar pés para fora da cabana, por mais que meu corpo clamasse para sentir a luz do sol novamente e ver novamente outros ambientes, não sabia se ele continuava no acampamento, e depois daquela conversa, não queria esbarrar com o mesmo.

      Cecília fora no final do dia trocar meus curativos novamente e levou algumas peças de roupa, aproveitando para mostrar onde ficava cada coisa na cabana. A mesma não informou quem mais estava hospedado ali, e não perguntei. Torcia para que eles voltassem quando já estivesse na hora da minha partida.

        Levantei e fui até a janela olhar o dia nascendo lá fora. Conseguia ouvir passos e asas batendo perto da cabana. Illyrianos e suas manias e levantar ao raiar do sol. Fechei os olhos por um momento e assimilei tudo. Eu havia fugido, e estava novamente livre. Meus olhos começaram a arder com as lagrimas que ameaçaram a cair. Depois de séculos estava finalmente sem amarras, sem correntes, e me curando.

        Lutei por dois séculos para sobreviver e poder ser livre, e não tinha ninguém, nem um mestre espião, que me impediria de usufruir dessa liberdade enfim conquistada.

        Me lavei tomando cuidados com os ferimentos e troquei de roupa. Fui na cozinha preparar algo para comer, encontrei torradas e um bule de café, era o suficiente. Alimentada fui em direção a porta com o coração batendo de ansiedade.

        No primeiro instante que coloquei os pés para fora da cabana, só respirei fundo fechando os olhos e sentindo os raios de sol no rosto. O cheiro fresco dos pinheiros encheu meus pulmões, e de repente eu estava em casa no solstício de inverno, com minha mãe enfeitando a lareira com pinhas. Os presentes, embaixo do pinheiro no canto direito da sala, reluziam cada um com uma embalagem diferente. Minha garganta apertou com a lembrança, e me esforcei para afasta-la.

         Abri os olhos e analisei ao redor. A rua a esquerda da cabana era uma subida um pouco íngreme. O caminho de pedra se espalhava por todo o trajeto, onde pessoas já começavam a se aglomerar, crianças passavam correndo e disparavam ao céu. Vida, havia vida ali. Sabia como o povo illyriano era em sua essência, sobre sua arrogância e cultura antiquadas, mas ali estavam eles, vivos.

         As risadas, as falas, os múrmuros, tudo virou música para meus ouvidos. Um soluço se formou em minha garganta mas consegui engoli-lo. Fui seguindo o caminho de pedras, encantada com tudo ao meu redor, como se fosse a primeira vez que tivesse vendo. O barulho de asas batendo aquecia meu coração e a vontade de ganhar o céu só aumentava.

        No final do caminho havia uma clareira na qual se encontrava ringues de treino. Ali estava uma tropa de guerreiros illyrianos treinando, laminas ruíam quando se encontravam, movimentos controlados e certeiros. E para minha surpresa e choque havia um grupo de fêmeas ao lado de um dos ringues, com armaduras, e armas em mãos, esperando para subirem ao ringue.

        Quando parti, fêmeas ainda perdiam as asas assim que sangrassem, quando vi Cecília imaginei que esse ritual tivesse sido banido, mas isso era muito maior do que qualquer coisa que tivesse esperando. Fêmeas treinando para se tornarem guerreiras.

         A raça de guerreiros alados sempre fora conhecido pela sua brutalidade e violência. O desdém pelas fêmeas sempre esteve presente nas suas culturas. Nossas culturas. Mas ali estavam elas. Me perguntei se essas mudanças ocorressem antes, a vida de minha mãe teria sido diferente? Não creio que ela mudaria qualquer coisa no que aconteceu com seu destino, sempre falara que tudo o que ocorreu levou ela a ter a mim e meu irmão, e isso bastava. Mas me confortava saber que, aquela conquista para o gênero feminino, de alguma forma, possuía certa influência dela.

— Impressionante, não?

    Dei um pulo para trás, e percebi que Cecília estava do meu lado, vestindo o traje completo dos illyrianos, possuindo um breve sorriso no rosto por conta do meu susto.

— Você... você vai treinar?

— Surpresa? — Ela disse levantando uma sobrancelha, mas ainda com o sorriso nos lábios. — Era somente uma curandeira com vontade de defender minha família e território, então o decreto do Grão Senhor para que fêmeas treinassem veio, e cá estou.

— De certo, impressionante. — Falei cruzando os braços e retornando minha atenção para o treino.

— Ouvi dizer que ao norte das montanhas os acampamentos eram mais difíceis de acatarem as ordens do Grão Senhor, mas não ao ponto de nenhuma fêmea estar sendo treinada.

— Por mais poderoso que seja, não creio que ele possa da conta de todos os acampamentos.

—Não, não creio que possa.

    Ficamos analisando o treino por mais alguns minutos, até que fora ordenado que duas fêmeas subissem ao ringue por um macho alto, de ombros largos e asas elegantemente fechadas. Devo ter ficado um tempo o encarando, pois, o mesmo virou na nossa direção e...

    Devlon. Pela Mãe, eu sabia quem ele era. Um dos lordes de guerra. O encarregado por treinar as tropas daquele acampamento. Não sei o que pensei para não me lembrar desse detalhe e ficar ali por tanto tempo, na verdade, não pensei. Meu pulso acelerou com a hipótese de ele saber quem eu era.

— Você... — A voz tão dura quanto a expressão dele. Que o caldeirão me engolisse. — Se vai treinar porque não está vestida como deve?

— Ah.... Não vou treinar, senhor.

      Resposta errada. Ele deu poucos passou e parou a 60 cm de distância.

— Então porque infernos está aqui e não ajudando nas tarefas de casa?

— Eu... eu... perdão senhor. — Quanto menos falasse, melhor. Ele continuou me encarando. Prendi a respiração no momento que ele falou:

— Você. — E então virou para Cecília. — Para o ringue.

Observei eles se afastarem, soltando devagar o ar preso, e então, voltei para a cabana. 

Corte de sombras e esperançaOnde histórias criam vida. Descubra agora