A poetisa

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6 de Agosto de 2019.


A mataram! A mataram!
Gritam na rua;
o corpo estatela-se
e desvela-se no meio fio.
"Que desgraça!"
Que não a mais faça.
Rezemos hoje para que a graça
dê-se à senhora que acabara de partir.

Que olhos lindos ela tinha!
Diziam as más línguas que a farinha
dos pães que fazia
não passava de heresia;
usava pecado na padaria!
Muitos homens a visitavam.
Clandestinos. Foragidos.
Dizem as más línguas
que era má pessoa,
que hoje todo seu mal ecoa
nos ouvidos de quem prejudicara.
A moral. A integridade.

Ah! Quem a matara?
Pobre senhora miserável,
comia do indizível,
do apalpável
pão amanhecido que fazia.
Sempre dado aos porcos.
Dizem eles que sorria,
mas que seus olhos caídos
só mostravam calidão.
Os criminosos iam embora
no dia seguinte. Solidão.

Escrevia para descontar a amargura,
a vaguidão deixada pelos viajantes.

Seu coração era podridão,
sua pele só dizia palidez;
nos seus versos com polidez,
no entanto, não havia pureza.
A mulher segurava a pena
com destreza.
Traçava dos dedos linhas
tênues e curvas
- faziam-se palavras.

Palavras feias, eles diziam.
Então decidira fugir também.
Acabou esmagada.
Ela morreu pobre no asfalto,
qual mais seria seu fim?
A vulgaridade não enriquece;
uma vez popular,
a nobreza nunca te esquece.
Uma vez cotidiano,
a vida acaba monótona.
Quieto e consueto
corria o poema obsoleto
que em três ou menos dias
tornara-se podre.
A senhora apodrecia,
herege e palavreira.
Lirismos exacerbados.
Ai de mim!
Apodrecia.

Quem a dera fosse volúpia notícia,
via-se morta na avenida,
fora do vestido, fora de si.
Querendo abrir a boca sem dentes,
pra gritar.
Querendo erguer os braços
e surtar.
Que amontoado de ar conseguiria se sanar?
Desvairava-se.
A pele enrugada desfazia-se.
Correu os olhos - a visão - pelos rostos,
e colocara-se a chorar.

Em breve jogavam rosas no altar;
aguerrida, nos casórios antes fosse
- ao menos hoje rosas irei ganhar.
Antes pudesse ela as segurar.
Qual o propósito das poesias
senão nos fazer lamentar.
Da lírica bela arrependia-se,
sublimidade não lhe fazia pensar.
Tão bela e bucólica, faço-te juras de amor!
Foste a única e verdadeira
que conseguira aclamar o meu louvor.
Sanar o explendor que sentira
por literalmente todas as mulheres.
Amor... Amor!

Agora escreveria martírio,
se dedos mortos pudessem escrever,
e se a dor não fosse tão abrupta.
Ao menos a poesia lhe era boa.

Ah, poesia!
Conseguira acalmar o meu pavor!
Lembrava de quando linhava
e costurava as palavras no papel.
Acalentou-se com a memória
de quando morria de amores,
e no caderno, escrevia seus horrores.
Os esplendores da vida!

Mas...
Que há em escrever senão sofrer?
O amontoado de ar dançava
por cima do próprio velório,
enquanto gargalhava e sorria;
A morte me foi um poema compulsório.

MartírioOnde histórias criam vida. Descubra agora