que males infiltram-se no eclesiástico pulmão
quando tosse pra fora a própria lamentação?
o lobo responde, com focinho molhado, escorrendo:
é o meu jeito de lidar com as caças que nunca
consegui abater, queridíssimo reverendo.
o corvo, resmungando alguma propaganda que vira
na televisão (jornal das oito) outro dia
grasnou, decadente:
é só isso que me faz sorridente.
os corais, esbranquiçados por conta do vício,
insistiam na narrativa:
é só isso que nos acalma, senhor,
é só isso que nos dá motivo.
o golfinho disse, como num sussurro
se não fazê-lo,
é impossível dormir, doutor.
fico de olhos assíduos
fixos no tudo que nado.
perdidos na imensidão
que me é o cotidiano
(cheio de óbvio,
cheio de passado)
completando o que dissera o bicho anterior
a raposa continuou:
sei que existem decepções
e não espero bajulação por parte da vida!
pelo contrário, Vossa Santidade,
sou consciente da brandice esquizofrênica
das insatisfações que saem como granidos
dos meus dedos e da minha língua.
acredito que estou cedendo
cada dia mais à imobilidade das coisas.
meu emprego me desanima,
viver me soa insatisfatório.
o clérigo anotou todas as confissões
e disse:
para todos receito esse comprimido
(ergueu as mãos e mostrou a embalagem).
é necessário que o tomem todos os dias,
antes de dormir.
caso se viciem,
recomendo frequentar o outro grupo de apoio e,
assim, terão seu novo remédio
e uma nova solução.
todos agradeceram e deixaram o recinto.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Martírio
PoesíaBoas vindas ao Martírio, uma viagem adentro das piores emoções humanas. Atente-se ao pôr-do-sol das aparências - aqui não fingimos prudência ou moralidade -, quando a noite cai, a encaramos e a enfrentamos sem medo. Quando as luzes se apagam, a verd...