Justificação de Hábitos e Soluções

40 12 27
                                    

que males infiltram-se no eclesiástico pulmão

quando tosse pra fora a própria lamentação?

o lobo responde, com focinho molhado, escorrendo:

é o meu jeito de lidar com as caças que nunca

consegui abater, queridíssimo reverendo.


o corvo, resmungando alguma propaganda que vira

na televisão (jornal das oito) outro dia

grasnou, decadente:

é só isso que me faz sorridente.


os corais, esbranquiçados por conta do vício,

insistiam na narrativa:

é só isso que nos acalma, senhor,

é só isso que nos dá motivo.


o golfinho disse, como num sussurro

se não fazê-lo, 

é impossível dormir, doutor.

fico de olhos assíduos

fixos no tudo que nado.

perdidos na imensidão 

que me é o cotidiano

(cheio de óbvio,

cheio de passado)


completando o que dissera o bicho anterior

a raposa continuou:

sei que existem decepções

e não espero bajulação por parte da vida!

pelo contrário, Vossa Santidade,

sou consciente da brandice esquizofrênica

das insatisfações que saem como granidos

dos meus dedos e da minha língua.

acredito que estou cedendo 

cada dia mais à imobilidade das coisas.

meu emprego me desanima,

viver me soa insatisfatório.


o clérigo anotou todas as confissões

e disse:

para todos receito esse comprimido

(ergueu as mãos e mostrou a embalagem).

é necessário que o tomem todos os dias,

antes de dormir.

caso se viciem, 

recomendo frequentar o outro grupo de apoio e,

assim, terão seu novo remédio

e uma nova solução.


todos agradeceram e deixaram o recinto.



MartírioOnde histórias criam vida. Descubra agora