|livro um| quattuordecim

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Quando acordo, o quarto ainda está em uma semi-escuridão pacífica. Lalisa dorme de costas para mim, o corpo nu meio coberto pelo lençol, os cabelos em uma bagunça no travesseiro e a respiração calma. Ela ainda está dormindo profundamente.

Meu corpo dói ao me sentar, mas é uma dor gostosa, nostálgica, que eu quero sentir mais vezes. Por alguns minutos, encaro a mobília escura do quarto, as paredes claras e a bagunça que fizemos na cama. Vago por esses minutos no que faria se acordasse ali todas as manhãs pois, ao ver uma gretinha luminosa entre as cortinas blackout, percebo que o sol já nasceu. Penso no que faria se pudesse me agarrar a cintura de Lalisa e observá-la dormir. Eu não perderia nenhum suspiro, nenhum movimento, nenhuma fala, todos os dias, sem tirar os olhos, notando cada tremular de pálpebras, cada respiração compassada, imaginando no que ela estaria sonhando, no que estaria pensando... eu viveria apenas para servi-la.

Amo cada perfeição existente em cada parte do corpo de Lalisa, mesmo que ela minta, dizendo que não consigo amar ninguém além de mim mesma. Eu amo como ela me faz sentir bem, amo como sou perto dela. Não é o suficiente? Lalisa é uma mulher segura, ela é boa em tudo que faz, ela me deixa à mercê de um ataque cardíaco toda vez que anda, fala ou apenas dá aula, na maneira que sorri, que fica chateada, que me afasta e depois volta. Seria impossível não me apaixonar por Lalisa.

Ainda meio sonolenta, ouço um barulho no andar de baixo e coloco a culpa nos gatos. Acordei com eles andando e esbarrando em coisas, fazendo os sons reverberarem pela casa vazia. Leo e seus olhos brilhantes no escuro, Lily querendo entrar no quarto para dormir conosco — o que eu não deixei, claro, Lalisa seria só minha aquela noite —. Então, ao continuar ouvindo o barulho, não me assusto, tateio entre os lençóis procurando a minha roupa, rezando para não acordá-la. Visto a blusa calmamente, a calcinha ainda no chão, junto a calça, mas não visto a primeira peça, jogo-a debaixo da cama de Lalisa e ponho somente a calça.

O barulho ainda continua, parece vir da cozinha.

Abro a porta do quarto de Lalisa, semicerrando os olhos pela luminosidade do corredor, e Jennie, a gata, está na ponta da escada. Seus olhinhos pequenos me observam enquanto desço para o primeiro andar, ela passa o seu corpinho nas minhas pernas, me fazendo pegá-la no colo.

Meu rosto precisa ser lavado e meus cabelos penteados, minha roupa está amassada. Meus pés descalços ressoam no linóleo, meu corpo estala quando me mexo, mas nada disso me faz desviar a atenção da decoração da casa. É como se eu fosse um comprador esperando para dar o lance perfeito. Há uma parede na sala de estar lotada de certificados e diplomas, emoldurados em uma moldura preta, que contrasta com a parede laranja. A única foto dela é em sua formatura, vejo uma Lalisa mais jovem em sua beca, as mãos segurando o diploma e os cabelos castanhos longos. É estranho ver seus cabelos tão grandes assim, estou acostumada com eles curtos, traz um ar maduro para as feições delicadas. Mas fora isso, não há nenhuma foto de amigos, dos pais ou tios, nem dos seus gatos, a casa de Lalisa é impessoal. As paredes de cores extravagantes são o único toque dela, a estante lotada de livros também, alguns estão na mesa de centro, mas não há nada dela, não há fotos, roupas jogadas, não há uma decoração pessoal além do que penso ser tirada de um catálogo de revistas.

Por estar acostumada a minha bagunça e de Jisoo, me sinto frustrada em não descobrir muito na de Lalisa. No meu quarto, tudo expressa que duas garotas afetadas moram lá, desde os escritos em caneta hidrográfica de um possível assassinato atrás do guarda roupa, até as roupas jogadas no chão, as cinzas de cigarro na cama, os livros que não entregamos a biblioteca, a pia do banheiro lotada de batons, maquiagem, calcinhas, chapinha de cabelo, a lata de lixo que precisa ser esvaziada e os restos de comida na mesa de estudos, copos de café, marcas de mãos na parede e o ventilador de teto com uma hélice a menos, porque Jisoo, quando estava chapada, tentou se pendurar nele e acabou quebrando-o.

O segredo do seus olhosOnde histórias criam vida. Descubra agora