Vinte e Nove

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Do que valia continuar quando tudo se foi? Era minha dúvida naquele instante gélido e cruel que me atormentava frente ao caixão de Ward.

Três dias após o acidente seu velório foi feito e me pergunto se passou-se tão rápido quanto vi ou se me desconectei o suficiente ao ponto de mal perceber as horas passando.

A verdade é que o tempo se torna muito relativo no decorrer do desespero. Tentei por diversas vezes prestar atenção nas palavras do padre, mas me pareciam vazias assim como os olhos dos outros presentes.

Olhos castanhos, olhos verdes, olhos azuis e pretos. Todos sem cores reais ou brilho que pudesse ofuscar as lágrimas frias. O mar de suspiros se mantinha constante, acho que foi o velório mais lotado que presenciei.

O de minha mãe não comportaria nem metade das pessoas que ali se encontravam, fato que me surpreendeu um bocado pela escolha do local. O Senhor Carter foi enterrado e velado na cidade em que foi criado no interior do Canadá, mesmo assim seus fãs e amigos percorreram quilômetros para lhe dizer adeus.

Sendo sincera nem imaginava que os amigos do Raio da RFB viriam, visto suas intenções claramente oportunistas. Mas nada podia fazer quanto à isso, muito menos à McMillan que chorava como uma criança arrependido de ter traído meu namorado.

De repente senti uma mão cautelosa, quase que com medo encostar em mim sinalizando para que levantasse e fosse até o pupito realizar meu discurso fúnebre. Lentamente fiz o que me solicitaram, aproveitando para olhar melhor o cenário deplorável que me encontrava.

Dona Inês se mantinha no primeiro banco e tenho certeza que seu desejo era poder realizar ela própria o discurso de despedida para o filho, mas estava tão perdida que não seria capaz de encontrar as palavras. Não que eu estivesse bem, muito pelo contrário, mas não costuma ser natural que um pai enterre seu filho.

Então subi ao pupito com um aperto no peito e desamacei o papel no qual escrevi com pesar à Ward, observando mais de perto notei que minha caligrafia estava completamente borrada pelas lágrimas que derramei na noite passada, contudo ainda dava para ler apesar dos borrões de tinta.

- Ward Carter era a pessoa mais maravilhosa que um dia conheci - Comecei retirando os óculos escuros comuns que usei naquela manhã cinzenta. Parei e percebi que nada do que eu havia escrito mostrava o que realmente gostaria de dizer, logo amacei a folha de papel novamente e recomecei - Eu o odiei como nunca quando o vi pela primeira vez, eu o amei mais que tudo quando o enxerguei com o coração pela primeiríssima vez. A verdade é que nenhuma emoção poderia ficar na mediocridade quando falamos de Ward, ele foi o homem mais intenso que um dia já viveu. Ele tinha uma maneira incompreensível de agir como um garoto e um adulto ao mesmo tempo, ele era alegre como uma brisa de verão, embora odiasse a estação!

Falando isso pensava no quanto ele teria odiado nos ver chorar ainda por cima vestidos com roupas mórbidas, de modo algum a funebridade combinava com Ward Carter. Ele fora alegre com seus óculos ridiculamente extravagantes que eu jurava não ter mais coragem de ver.

A cada segundo me controlava para não o desapontar, para não falhar na nossa última conversa mesmo que fosse impossível ouvir sua resposta, mas conforme o tempo foi passando não consegui evitar de soluçar e chorar em meio ao discurso. O vazio que se instaurara no meu peito já não podia deixar de se esvair.

- Des...desculpa - Gaguejei enquanto a Senhora Liliam saia de seu cantinho ao lado de meu pai para vir me socorrer. Não tinha visto ela até então, seu olhar cheio de tristeza e dó, carregava consigo mais velhice do que jamais fui capaz de ver nela. Agradeci por seu esforço, todavia afirmei que continuaria - Ward era uma pessoa extraordinária e por favor não venham me dizer que ele se tornou uma estrela, por que seu brilho era maior do que o do sol e acreditem, ele sabia disso!

As pessoas mais próximas colocaram um meio sorriso amarelo no rosto lembrando do egocentrismo a cima do normal de Ward e de como amava que falassem dele.

- Ele me deu um mundo novo - Finalizei indo até onde seu caixão fechado estava e passando a mão sob a madeira disse - Eu vi o colorido por trás de seus olhos, obrigada Senhor Carter!

***

Após todos saírem da igreja de vitrais cor de rosa continuei sentada no primeiro banco velho olhando para onde seu corpo estava guardado. Escutei passos pesados vindo em minha direção, entretanto não desviei minha atenção nem por um milésimo segundo para ver quem era.

A pessoa sentou ao meu lado e pelo perfume descobri que se tratava de Dona Inês, ela ainda estava chorando, no entanto se encontrava em um estado melhor do que antes.

- Ele me ligou um dia antes de ... você sabe o que - Segredou-me em voz baixa, quase que um sussurro - Meu filho te amava muito, não parava de falar em você toda vez que conversamos. Agradeço por ter cuidado do coração surpreendente frágil dele, Ward tinha tantos sonhos para o futuro...

- Me desculpa - Interrompi ela o mais rápido que pude - Não posso continuar com isso, te escutando como se a morte dele não fosse minha culpa. Ward não queria entrar na pista, mas eu disse a ele que jamais deveria abandonar seu sonho. Se seu coração não pode mais bater é minha responsabilidade, eu sou a culpada por essa terrível morte. Não me agradeça, eu não mereço.

- Você não tinha como saber.

- Mas ele sabia e mesmo assim preferiu me ouvir - Balbuciei olhando para minhas mãos imaginando que o sangue dele estavam sob elas.

Foi então que a mulher deitou sua cabeça sob meu ombro e ficamos um bom tempo a observar sem expressão alguma o caixão que logo seria retirado para o enterro. Ela desejava tirar o peso da morte dele de minhas costas, mas ainda não tinha ideia de como o fazer, de como continuar sem ele.

Todos tinham uma visão ofuscadaca de Ward, para muitos ele era um piloto de talento, no entanto poucos tinham ciência do seu lado filho, amigo, companheiro e quem sabe um dia até pai. Sinceramente gostaria de poder contar que vivemos muitos anos e tivemos três lindos filhos quase que no final de nossas carreiras. Conversamos raríssimas vezes sobre essa possibilidade e meu namorado afirmou que realmente pensava nisso com carinho e prometemos reatar esse assunto num futuro não tão longínquo. Seu sonho era ter uma garota de nome Bianca.

Tenho certeza que se tudo tivesse dado certo e nossos desejos fossem concebidos, Bianca teria sido a mais mimada pelo pai. Uma criança que provavelmente se apaixonaria pelo carte precocemente e teria instrução suficiente para vencer.

Porém esse foi um sonho apagado pelo destino e que eu tive esperanças de realizar.

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