20. Graciosidade e perfeição

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Alice

        A raiva me consumia por dentro. A cada segundo eu sentia mais remoço e arrependimento por ter deixado o beijo ter acontecido. Uma coisa tão natural e normal, saber que eu era mais adulta que ele no ponto de vista da situação me revoltava ainda mais.

― Alice? ― A voz de Sabrina era incerta atrás de mim.

        Droga!!! Esbravejei em pensamento. Carlos o porteiro olhou para mim confuso, acho que se perguntando "Se você não estava no apartamento dela, aonde você estava?". O que ele pensava ou não, pouco me importava agora, eu não tinha contado a Sabrina que Ethan morava no mesmo lugar que ele. De alguma forma eu quis guardar isso só para mim, se eles se vissem algum dia pelos corredores, ai já seria um problema deles.

        Eu pensei em seguir em frente, eu não estava com nenhum animo para conversas, mas passar despercebido por ela seria impossível, nos conhecíamos desde pequenas e impressões não eram tão circunstanciais no nosso caso de amizade.

        Então me virei lentamente pondo um riso falso em meu rosto e a cumprimentei.

― Oi amiga! ― Falei com uma animação mais falsa ainda.

― Está indo embora?

― Uhum... Eu ia passar para falar com você, mas lembrei que tenho aula de balé. ― Bati a mão na testa numa encenação fajuta de fingir um esquecimento.

― Que pena, eu vou para praia com o pessoal. Te chamaria pra ir, mas você já tem compromisso. Estarei em casa mais tarde se quiser voltar. ― Olhei-a mais criteriosamente vendo que ela usava biquíni por baixo da roupa.

― Tudo bem. ― Me aproximei e cumprimentei-a com dois beijos no rosto de despedida. ― Preciso ir. ― Falei de modo apressado já me afastando.

        Por sorte o primeiro ônibus que passou me deixaria bem em frente ao centro de dança, mas com uns de dez minutos de atraso. A professora Ana odiava atrasos, ainda mais quando estávamos próximos de uma apresentação e eu sendo a bailarina principal no espetáculo ela deveria estar em um colapso de raiva.

        Entrei correndo e escutando um "Você está atrasada Alice" furioso. Mudei de roupa tão rápido que em dois minutos já estava pronta e junto com os outros.

― Me desculpa senhorita Ana, isso não vai acontecer novamente. ― Disse já ficando em ponta.

― Claro que não. ― disse com ironia. ― Você mais do que ninguém sabe que temos uma apresentação nesse fim de semana. Atrasos são intoleráveis, principalmente da sua parte Alice.

        Começou com o blá, blá, blá chato do sermão.

― Eu já entendi e disse que não vai mais acontecer. ― disse no mesmo tom ríspido que o seu. ― podemos começar? Estamos perdendo tempo aqui.

        Todos estavam em silêncio, apenas nossas vozes eram ouvidas, mas eu não me deixava ser confrontada por ninguém.

― Vamos mais uma vez. ― deu play no rádio.

        Eduan veio para sua posição em volta de mim, ele era o meu parceiro no recital. Assim intitulado por Ana ele e eu éramos seus melhores bailarinos. Comecei com cinco e Eduan um ano depois de mim. Ele era somente um ano apenas mais velho que eu.

― Eu não contei para vocês, mas teremos um convidado especial nesse recital. ― a voz fanhosa de Ana se sobressaiu ao nosso redor. ― Tenho uns contatos e um olheiro de Julliard vira para avaliar cada um de vocês. ― tinha um sorriso vitorioso nos lábios. ― Será como uma audição, então espero que deem o seu melhor.

        Senti meu estomago encolher, se eu já estava nervosa, aquela notícia tinha acabado de me deixar ainda mais. Julliard era o sonho de todos presentes aqui. Eu nunca me imaginei vivendo do balé, mas sempre gostei de dançar, via isso mais como um robby. Mas se eu conseguisse que esse auditor se interessasse por mim, eu relevaria minhas escolhas e iria para Julliard que também era um pouco do meu sonho.

― Você está bem Ali? ― Eduan segurou firme em minhas mãos. ― Está tensa...

― Eu estou bem. ― disse para não preocupa-lo. Tensa eu realmente eu estava, como uma avalanche as coisas estavam acontecendo e o estresse me deixava ainda mais nervosa.

        Uma bailarina tem que estar bem tranquila em cada gesto que faz, suas execuções precisam ser leves, limpas e graciosas acima de tudo. Mas não era bem isso o que estava acontecendo hoje, a tensão mexia com meus nervos e a cada movimento eu errava um passo.

― Relaxe Alice. ― Eduan sussurrou pra mim como forma de me tranquilizar. Gentileza de sua parte.

        Como meu parceiro ele fazia de mim a destaque, claro que éramos uma dupla, mas a dança fazia com que eu me sobressaísse era uma dança romântica.

― Eu posso parar por cinco minutos? ― Perguntei já certa da resposta que seria um "não" vindo da senhorita Ana.

― Se esses cinco minutos vão te fazer voltar melhor do que isto. ― menosprezou o meu jeito de dançar com arrogância ao falar.

        Ela era uma mulher amarga, mas tinha seus momentos de gentileza quando queria. Peguei os cinco minutos que ela me deu com dificuldade e me isolei em um canto. As sapatilhas nunca foram confortáveis, mas hoje elas judiavam ainda mais dos meus pobres pés de bailarina. Sentei desamarrando as pressas à sapatilha esticando meus pés que já estavam esfolados.

        O calor era tremendo e mesmo bebendo toda a água que trouxe na garrafinha de casa eu ainda estava sedenta. Mas a sede poderia esperar mais um pouco, eu ainda tinha quatro minutos, e os aproveitei fechando os meus olhos e repetindo como um mantra várias vezes para mim que eu precisava me acalmar e esquecer as coisas que me perturbavam por hora, me focar no que realmente importava no momento.

― Cinco minutos Alice. ― a voz de Ana entrou em meus ouvidos me fazendo sobressaltar.

― Estou indo. ― disse desgostosa, mas antes dei uma boa alongada em meu corpo e ajeitei a sapatilha da melhor forma que pude.

― Se sente melhor? ― Ana perguntou me avaliando com descrença.

― Sim! ― Fui para minha posição.

        Aqueles cinco minutos me revigoraram em 75%, eu estava longe de 100%, mas qualquer melhora era uma vitória. Eu sabia aquela coreografia de có, estávamos ensaiando aquilo por meses não tinha motivo para tantos erros. E dessa vez buscando toda calma dentro de mim eu dancei graciosamente, executando tudo com mais perfeição que antes.

― Não está 100%, mas melhorou mas melhorou bastante. ― aquele lampejo de sorriso nos lábios dela me incentivou mais a dar tudo de mim. ― Vamos de novo. ― E novamente a música de Frédéric Chopin reiniciou.

        Deixei o som da música me guiar de modo involuntário, me focando em cada nota e a dança saia naturalmente. Faltava pouco para eu terminar graciosamente a coreografia quando um barulho fez eu me desconcertar e parar de dançar. Por pouco não viro o pé, o que seria um desastre desesperador. Olhei na direção do barulho vendo os ferros ainda tintilarem no chão e o vulto do que parecia um homem sair andando apressadamente.

― Não parem, continuem. ― Ana ordenou com um grito.

        E voltamos, uma, duas, três... E por ai foi sem intervalo e descanso, cheguei em casa totalmente em frangalhos, mas com o mérito de ter conseguido a graciosidade e perfeição.

Desapego - IMCOMPLETOOnde histórias criam vida. Descubra agora