Cérebro

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Olá, meus amores.
Tive essa ideia há algum tempo e resolvi colocar a mão na massa. Eu espero muito que vocês gostem, porque eu estou amando escrever.

Gostaria de avisar já de antemão que terão capítulos bem pesados que podem trazer gatilhos ou algo do tipo, então me perdoem e eu recomendo discrição.

Enfim: curtam, comentem, compartilhem com os amigos e, principalmente, aproveitem a leitura!
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Existem pessoas que precisam se manter ocupadas o dia inteiro para não pensar nos problemas que as circundam. Muitas encontram o falso conforto no trabalho. Falso porque ninguém fica confortável trabalhando dezesseis horas diárias em uma rotina totalmente estressante onde a vida de outra pessoa depende de você. Ninguém fica confortável sabendo que um erro pode levar a morte. Conforto nem devia ser uma palavra considerável nessa situação. Mas Alicia Sierra, chefe da equipe de neurocirurgiões do Ospedale SS Giovanni e Paolo, em Veneza, jurava a si mesma que tudo isso era confortável. Talvez a palavra mais adequada seja estabilidade, afinal, as dezesseis horas de jornada de trabalho serviam para algo além do estresse: seu status quo.

Alicia estava no auge de seus 41, quase 42 anos, enrolada em um processo de divórcio que estava sendo julgado mais devagar que o girar de uma manivela, com quinze anos de carreira e cinco gerindo todos aqueles médicos que pareciam ter se formado no meio do mato. A única coisa que realmente a mantinha viva era seu gato, o Comissário. Não foi ela quem deu esse nome, aliás. Ele foi forçadamente obrigado a ficar com Sierra após a tia Hermínia - leia-se a única parte da família que ela tinha contato e considerava como tal - falecer com o avanço súbito de uma doença degenerativa. A mulher era inspetora policial, uma das melhores, mas foi afastada dos casos quando a cúpula percebeu que a patologia estava afetando demais o rendimento da equipe. Foi quando ela passou a ficar mais tempo em casa e adotou o gato amarelo que apareceu, sem nem se importar se ele já tinha dono ou não. Desde então, o bichano tinha virado o maior companheiro dela.

Mas ela passou dessa pra melhor - ou pior, nunca se sabe - e coube à Alicia cuidar do felpudinho. De início, pensou em doá-lo, mas conseguiu perceber nos olhos dele como estava perdido sem a dona. Ele circulava as pernas de Sierra tentando encontrar algum conforto, algum carinho, mas após dois dias sem sucesso, ele parou e instintivamente, para se proteger, começou a habitar um canto isolado da casa. Alicia era tão sozinha quanto Comissário. Cada um imerso em sua própria solidão. E se engana quem diz que os gatos não têm sentimentos. A mulher era o próprio estereótipo felino: independente, fria e traiçoeira, mas quem a conhecia a fundo - e aos gatos também - sabia que o coração dela era de ouro e ela se entregava tanto ao amor quanto ao luto. 

De fato, a única coisa que a mantinha viva era saber que um serzinho dependia dela. Eles eram o que restava da família um do outro, unidos por uma mesma pessoa, mesmo que ela não estivesse presente. Ambos aprenderam a navegar nas ondas daquele mar de sentimentos. E com isso voltamos ao fato de que a situação não era confortável, e sim estável. Tão estável que a cada dia a mais parecia um dia a menos. Tão estável que a última cirurgia complicada Alicia nem lembra quando foi. Tão estável que ela ficou perdida no primeiro momento ao ouvir seu nome ecoando pelos corredores em meio as palavras "urgente" e "sala de operações 23". Sierra não sabia mais o que era urgência e sala 23 há muito tempo. Ela parou de contar os dias depois do segundo mês. Mas agora ela apertava o passo pelos corredores incrivelmente brancos. Quando chegou ao outro lado do hospital, correu em direção ao seu destino e, enfim, entrou em contato com o gelado daquele lugar, ela sentiu a vontade de viver retornar como num passe de mágica.

Longe de mim, escritora, querer dizer que Alicia Sierra se divertia com o fato de ter que abrir cabeças e fazer operações complicadas que podem levar à morte, mas era basicamente isso. Afinal, ela era formada em neurocirurgia especializada e coordenadora de uma equipe inteira. A adrenalina era exatamente o que estava que faltando na rotina dela. A rotina que tinha virado apenas rotina depois de sessenta dias sem nenhuma novidade. O cérebro - ironicamente falando - enviando sinapses para todo o corpo. O dinamismo de correr contra o tempo, de fazer tudo o mais correto e também o mais veloz possível. Aquela sensação de dor de estômago que se parecia com a de um primeiro encontro. O vento do ar condicionado na temperatura 15 obrigatória por causa dos equipamentos que se chocava com a pele em 36,5 graus. E, principalmente, a ideia de que ela era capaz de salvar uma vida, porque Alicia bem sabia que era uma das neurocirurgiãs mais capacitadas da região de Vêneto. 

Mas novamente, longe de mim dizer que ela estava se divertindo, porém a máscara azul cobria o sorriso de satisfação - quase sociopata - que ela tinha no rosto. Uma das muitas vantagens de usar máscara é que você pode sorrir em situações não muito aceitáveis, e isso sem ninguém ver e ficar julgando. Igual daquelas vezes que estamos caminhando e lembramos de algo engraçado e tentamos ao máximo esconder o riso, já que os outros nos achariam loucos. Era como se Alicia estivesse passando por essa mesma situação. Enquanto terminava de vestir o avental e colocar as luvas emborrachadas, ambos também azuis, ela tentava esconder a animação de entrar em ação após tanto tempo. E falando em tempo, ela sabia como ele era precioso: em menos de cinco minutos ela estava pronta. Ao aproximar-se da mesa de cirurgia, entretanto, seu sorriso se desfez na hora e o rosto assumiu uma tensa preocupação.

- Cazzo, è una ragazzina

Mesmo com os muitos anos atuando na área, apenas uma vez ela tinha operado uma criança. Um filme passou pela mente dela ao lembrar que aquela tinha sido uma das cirurgias mais complicadas. A chance de sucesso era apenas 20%, mas em tal momento de desespero, os pais do menino quiseram que ela tentasse. Eles acreditavam piamente na pequena chance de dar certo. Infelizmente, não foi o que aconteceu e Sierra se sentiu tão culpada que tirou folga nos dois dias seguintes. E naquele momento presente, vendo a pequena garotinha na maca em frente aos seus olhos, os fantasmas do passado vieram assombrá-la e ela não conseguiu disfarçar o quão perturbada tinha ficado. A menina, que ainda não tinha nome na ficha por ter entrado pela emergência, não devia ter mais de 10 anos. Inclusive a idade era similar à do garoto que tinha sido sua primeira falha. Aceitavelmente, na época, Alicia tinha apenas quatro anos de atuação e agora, em contrapartida, já se passava mais de uma década, mas isso não impediu que ela ficasse ansiosa. 

Sierra nunca acreditou em destino, acaso ou karma, mas a escritora que vos fala é uma pessoa altamente suscetível a crer em sinais. Enquanto a médica lia a causa da emergência pensando no que fazer para que a cirurgia não tomasse o mesmo rumo da primeira, eu sigo fielmente acreditando que o universo tenha mandado a menina para que Alicia se perdoasse e soubesse que jamais teria alguém melhor para fazer a operação. 

- Me passe o bisturi. Vamos abrir.

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Eu espero que vocês tenham gostado desse primeiro capítulo. Se puderem deixar o feedback serei eternamente grata.

Qualquer coisa me chamem no twitter: @a_ricieri

Um beijo e eu volto em breve

FragmentoOnde histórias criam vida. Descubra agora