[Arco I] Capítulo 1: Os espíritos

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O fogo se alastrava por todo o vilarejo de Salvanostro agora, o céu em um tom escarlate profundo.

Logo seria o fim.

Os telhados dos casebres ardiam em chamas, enquanto gritos ensurdecedores vinham de todas as direções.

Corpos queimando saíam de dentro das casas, dançando desesperados.

As labaredas não tocavam a pele da menina, no entanto. Pelo contrário, abriam caminho a cada passo descalço dado por ela.

Levantou a cabeça.

Sobre o altar de sacrifício, os pés pálidos de uma criança menor eram diferentes dos dela. Entre os dedos, sangue escorria. Cabelos ruivos tremulando ao vento escondiam-lhe o rosto, mas a menina tinha certeza que a criança chorava e isso era tudo em que pensava. Era a única coisa que importava.

Adiante, o templo roubado pelo deus Ar era uma cortina de fumaça negra.

***

Selena acordou.

Suor escorria por sua nuca.

Sentiu Anliss subir em sua cama e engatinhar agitadamente até aconchegar-se ao seu lado — como se fosse uma cria de gato, mas não abriu os olhos. Não deu resposta a movimentação animada, embora tenha sentido as sacudidas que a irmã deu em seus ombros gemendo em negação. Então, a menina mais nova forçou as pálpebras de Selena a se abrirem com as pontas dos dedos.

Olhos cor de âmbar — a única coisa semelhante entre as duas — brilhavam junto ao sorriso da criança menor. Selena piscou algumas vezes para que a irmã entrasse em foco: os cabelos ruivos da caçula emaranhados, a pele pálida dos povos estrangeiros, tão diferente da sua, enrubescida.

— O que você quer? — Perguntou Selena, sonolenta.

— É seu dia concedido, sua primavera. — Respondeu animada demais para uma manhã.

— Meu dia concedido não é na primavera. — Disse e fechou os olhos novamente.

— Acorda, acorda, acorda! — A menina agora pulava em cima da outra. — Vamos! Vamos a caverna do rio Ayé e à clareira colher flores para o seu festejo.

—Temos flores suficiente em nosso jardim. — Selena tirou a irmã de cima de seu corpo e virou as costas.

— Mas não girassóis. Por favor! Há dias que você não sai de nossos aposentos. Não vai comigo lá fora, não brinca mais... Tem raiva de mim? Em que aborreci você?

— Você está me aborrecendo agora, por exemplo. E sabe que é o pai que não me deixa sair esses dias. — Resmungou.

— Mas hoje é a sua concessão, não é? Nosso pai não será contra logo no dia em que o deus te trouxe a nossa família. — Argumentou com um sorriso sapeca e exagerada devoção.  — Ainda mais quando nós podemos orar frente a gruta, antes de nadar na nascente, é claro. Por favor, por favor! — Insistiu pulando em suas costas.

Selena suspirou sentando-se na cama.

Podia Anliss ser uma criaturinha muito pequena para os seus doze anos concedidos, mas era um serzinho tão agitado quanto franzino. A mãe de ambas, Anná, costumava comparar Anliss com os antigos espíritos protetores das nascentes do Ayé e da floresta: pequenos e rápidos como beija-flores, criados pelos deuses Água e Terra, eram capazes de enlouquecer de irritação homens adultos de índoles perversas até causar suas mortes.

Uns diziam que os espíritos deixaram a floresta quando guerreiros imperiais do Norte a violaram, atravessando-a para derrotar os povos impuros Solares nas que agora eram chamadas de Terras Arrasadas do Sul. Outros diziam que tais espíritos foram assassinados por esses mesmos guerreiros por serem seres malignos. Havia até mesmo quem dissesse que eles nunca existiram.

Sexto Sol: As filhas SolaresOnde histórias criam vida. Descubra agora