Uma tempestade vinha do mar.
A ventania fazia barulho batendo nas janelas de pesadas madeiras como se fosse arrancá-las, jogá-las para dentro dos aposentos de Kan.
Ele abraçava a esposa aquecendo-a pele com pele, levemente, apenas o máximo necessário para ser agradável para uma pessoa comum. Não precisava puxar as cobertas sobre ambos os corpos nus, negros como uma bela noite. Nem ao menos lembrou de fazê-lo.
Enquanto seu sêmen ainda escorria do ventre às coxas de Musan, seus pensamentos já estavam em um lugar muito além dos dois em sua cama.
— O que tem em sua mente, marido?
Ele a apertou em seus braços e suspirou.
— O ritual. Dias de sacrifícios são sempre dias cansativos, não sente?
— Dizem que é no dia dos grandes sacrifícios que crias solares morrem e crianças purificadas são concebidas. — Disse a esposa, seu tom era de quem apenas repetia palavras sem vida vindas de um lugar distante.
— E nós acreditamos.
— Temos que acreditar...
Kan não podia dizer se o tom de desesperança na voz da esposa se devia às várias tentativas de dar-lhe uma criança, o cansaço de horas em pé ao seu lado — assim como de patriarcas da Ordem e do conselho da cidade de Redenção — enquanto assistia os rituais sem fim nas margens do afluente do rio Ayé, que cortava a cidade, ou se de fato era devido a terem que acreditar, tentar trazer ao mundo uma criança enquanto várias outras morriam para a glória e consolidação do Império. Talvez seu sorriso amarelo fosse por todos esses motivos.
Ele enfiou seus dedos por entre os cabelos da nuca de Musan, os cachos entrelaçando-se neles. O rosto dela era pequeno e redondo, seus lábios carnudos tinham tons escuros e avermelhados. Seu semblante parecia mais maduro que seus dezenove anos concedidos.
— E se hoje tivermos concebido uma menina? — Ela quis saber, os olhos negros levemente preocupados.
— Não será. — Assegurou. — Não será.
Sentiu Musan apertar-lhe mais a cintura.
Beijou os cabelos da esposa e voltou a ficar pensativo. Desta vez compartilhando com ela seus pensamentos:
— A mais nova devia ter uns dez ou onze anos concedidos. Algo está estranho.... É o terceiro ano consecutivo que acusam crianças tão novas. Se fossem filhas Solares, mesmo nos tempos antigos, quando a magia no mundo não era escassa, teríamos dificuldades para saber de suas capacidades. Estão deixando óbvio demais...
— Estão ameaçando. — A esposa apontou.
Kan a observou, o queixo dela encostado em seu peito, não havia gravidade em sua expressão dessa vez, havia resignação.
— Mas a muito não vemos revoltas aqui nas terras do aço. — Ele lembrou. — Os rituais e os festejos da Semana do Grande Império estão cada vez maiores.
— Ouvi as mulheres do nosso clã, na casa de seu tio, murmurem que alguns membros de outros clãs estão cultuando os deuses proibidos em seus leitos, para não terem filhas.
— E pedem aos deuses Aço e Sol que não tenham filhas do Aço e Sol? Os deuses os castigariam se fosse o caso, não faz sentido o que dizem. Por certo que as mulheres do clã de meu tio estão agitadas com o estado de saúde dele, isso sim. Se o líder morrer, nenhuma das filhas dessas mulheres estarão protegidas, principalmente se o conselho decidir que ele não tem herdeiro aos olhos do Império, a cidade ficará completamente nas mãos da Ordem, não sabemos até quando.
— Nem uma filha desta terra, ou melhor, nenhuma jovem irmã orunda de toda a extensão de Orunayé está protegida, o irmão de seu pai morrendo hoje ou amanhã. Mas é verdade, marido, talvez seja por isso que estão matando cada vez mais e mais novas moças em nossa terra: a Ordem está ameaçando, como já disse, talvez ela queira tomar toda a cidade.
Kan pensou sobre isso e disse num sussurro mais para si mesmo do que para sua esposa:
— Quanto mais medo, menos reação.
Assim que ficou quieto, Kan ouviu distante os tambores do Alhando, residência do Apoah, tocando, em seguida o som foi se juntando com mais tambores do topo do templo, do alto das torres e dos muros da cidade, localizada no alto de uma falésia. Os sons eram como uma onda crescendo, ficando gigante, acordando todos os humanos e deuses, até os tambores do telhado sobre suas cabeças tocarem também.
O ritmo tocado não era alerta de ataque, tum tum tum, tum tum, tum tum tum, tum tum, não. Nem mais lento, anunciando a chegada da corte imperial, tum tum, tum tum. Era acelerado tum tum tum tum tum tum, como um coração, o que significava morte!
O anúncio de uma morte!
E só havia uma morte tão importante para rugir os tambores de Redenção...
— É o patriarca! Seu tio está morto, marido.
Nesta altura, ambos já estavam com metade de suas vestes, quando ouviram várias passos apressados vindos das escadas.
Guardas.
Batidas na porta.
Para Kan, morte ou ascensão estava por vir.
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Sexto Sol: As filhas Solares
FantasiaGênero: Novel | Fantasia | GirlsInLove | No Império de Orunayé, os descendentes dos deuses Aço e Sol são perseguidos e sua magia proibida. Selena, um jovem orunda, perde a irmã mais nova e é forçada a servir ao sacerdócio da Ordem como voto de fé d...