XVII - De nada importa uma barata morta

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 Noites de chuva deixavam Felia com um humor ainda pior do que o habitual.

 Sempre que a temperatura ao seu redor baixava, a voz em sua cabeça tornava-se mais alta e frequente. Ironicamente, os melhores momentos para ela tomar qualquer atitude eram durante as frias noites de Damora, tendo a escuridão como sua aliada.

 Ela esperou até que a chuva diminuísse para então sair pela janela do quarto. Desceu a parede de pedra da torre e esgueirou-se proxima aos muros até escapar do castelo sem ser notada.

 Vestia uma blusa e calça escura para se misturar nas sombras com mais facilidade. Também usava uma capa com capuz da mesma cor para proteger-se da chuva o máximo possível.

 Como se a fina chuva e ventos fortes não fossem incômodas o bastante, enquanto corria sobre os telhados altos da Zona Leste, a mente da princesa desnecessáriamente recordava acontecimentos inquietantes.

 Lembrou-se de quando caminhou pelo corredor estreito e sem iluminação que encontrou ao atravessar a passagem secreta no mausoléu. Sentia naquela ocasião um misto de medo e curiosidade ao se aprofundar cada vez mais na escuridão, mas acima de tudo sentia uma estranha certeza de que o que quer que estivesse no fim daquele caminho poderia ajudá-la a entender e destruir a maldição da sua família. Não sabia direito como, mas sentia que ali estavam às respostas para todas as suas perguntas. No fim, foi amaldiçoada da mesma maneira que sua mãe e tudo o que conseguiu foi um cinturão velho, pesadelos terríveis com cenas de assassinatos e uma voz em sua cabeça que a força a matar para não enlouquecer.

 A garoa seguia enquanto Felia corria sobre os telhados e cobria distancias impossíveis para uma pessoa comum ao cruzar com facilidade ruas largas em apenas um salto.

 Seu corpo estremeceu durante um salto mais longo ao atravessar uma lufada de ar. A voz em sua cabeça bradou exigindo que ela agisse com mais rapidez. Irritada, acelerou o passo.

 Quando deixou o castelo naquela noite, Felia tinha um nome em mente. Alamor Temerio, atualmente o mais influente banqueiro do Continente. Posição essa adquirida após a execução pública de Úlio Novato e parte da sua família juntamente com seus funcionários e familiares sob as acusações de crimes de corrupção e ligação direta com inimigos declarados durante a última guerra continental. Todas as acusações foram feitas por Alamor Temerio e seus associados.

 Sua mãe normalmente não teria permitido tal ato, mas com as batalhas entre as nações no ápice e sua maldição começando a sair de controle não podia deixar que um conflito interno iniciasse. A melhor saída foi satisfazer a vontade da maior parte da população.

 Mesmo após ser fortemente acusado por defensores da família Novato de armar contra o seu rival, Alamor nunca foi preso. Pouco antes do julgamento acontecer as evidências desapareceram misteriosamente e as testemunhas mudaram seus depoimentos ou desistiram de comparecer. Tudo pareceu contribuir para que ele permanecesse em liberdade. Aos poucos, seus acusadores deixaram de tocar no assunto e tomaram a decisão de se unir ao banqueiro ou abandonaram seus negócios e o Reino. No fim, aproveitando-se de toda a repercussão de seu nome, Alamor forjou para si a alcunha de intocável.

 Nada disso tinha a ver com a princesa. No entanto, Alamor tornara-se ousado nos últimos meses. Questionava publicamente as decisões de seu pai, o Rei. Se auto intitulou o porta-voz da oposição. Também iniciou um projeto para conquistar parcerias com os Reinos e congregações vizinhas a fim de se estabelecer como uma espécie de embaixador continental que não precisa submeter-se a nenhuma coroa. Sua fortuna em ascensão e o recente acordo com um grupo semelhante de opositores pertencentes ao Reino das Ruínas de Prata fizeram-no um homem excessivamente confiante. O banqueiro começara a pisar no calo da princesa, deixando-a tentada a descobrir o que aconteceria com a alcunha de intocável caso uma lâmina de ônix fosse atirada em direção ao seu peito.

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