XVI - No lugar do Líder da Guarda

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Ano de 484

 O nariz de Klaus doía por causa do frio.

 Ele estava sentado encolhido sob o toldo de uma banca de frutas desde o anoitecer enquanto a chuva caia. Não uma chuva qualquer, mas uma pancada de água tão pesada que o toldo ameaçava desabar sobre sua cabeça. Olhava para o outro lado da rua, na direção de uma casa com sacada. Um abrigo mais seguro que ele antes não percebera. Pensava se valia a pena correr até lá. Decidiu não arriscar com medo de se molhar demais e pegar um resfriado.

 Celeste ainda o repreendeu enquanto saia de casa vestindo apenas o uniforme tradicional. Não fosse a insistência da garota em ir atrás dele e obriga-lo a levar uma blusa ele estaria com sérios problemas agora. Embora fosse grato a ela, aquela blusa não seria de muita ajuda se o toldo desabasse. Ele orou baixinho pedindo aos deuses para que aquele toldo resistisse. Depois praguejou um pouco.

 - Toldo idiota! - Dizia e as vezes soltava coisas que remetiam ao passado. - Família idiota!

 Sentado ali, esperando a chuva passar e sem nada para distrai-lo, foi fácil se perder em pensamentos desnecessários. Lembrou-se de seus pais conversando entre si muitos anos atrás. Comentavam o quão trabalhoso era sobreviver tendo o fardo de cuidar de uma criança e como a vida seria mais fácil se Klaus não existisse. Eles sempre pediam para que Klaus não se machucasse e nem ficasse doente. Pareciam pedidos amorosos de pais cuidadosos, mas só estavam preocupados com as despesas que uma doença poderia gerar.

 Ele pegou um pedacinho solto da calçada de pedra e atirou para longe com toda a força na direção da rua, como se estivesse jogando fora as suas lembranças. A pedra caiu distante e quicou algumas vezes até mergulhar em uma poça de água e desaparecer. A ação não levou aquela lembrança embora, mas o ajudou a colocar a cabeça no lugar.

 Demorou muito para que a chuva diminuísse. Quando tornou-se uma garoa Klaus saiu relutante debaixo do toldo e voltou a sua patrulha. Precisava se movimentar com urgência. Suas pernas formigavam por causa do tempo que passara com elas encolhidas e seus pés estavam tão frios que pareciam começar a adormecer. Faltava mais da metade da noite para o sol nascer e seu turno acabar. Nem queria pensar se realmente teria que trabalhar na manhã do dia seguinte. Deveria ter perguntado ao Arwin quando teve a chance.

 Caminhou pela calçada desviando das poças de água. O que era mais uma questão de habito já que suas botas estavam encharcadas por causa dos respingos da chuva. Foi difícil encontrar uma posição que não molhasse a calça, infelizmente não teve como garantir botas secas também. Agora seguia nesse passo, para um lado e para o outro da calçada, quase como um bêbado, tentando não pisar nas poças.

 As noites sempre foram tranquilas em Damôra. O clima na região se resume a muito calor durante o dia e muito frio durante a noite. Por isso é raro ver moradores transitando em qualquer lugar depois que o sol se põe. Poderia ser o ambiente perfeito para ladrões roubarem pessoas desavisadas, mas aparentemente nem eles gostavam de sair nessa hora. Nos três anos de Klaus como membro da guarda, ele podia contar nos dedos de uma mão o número de ocorrências durante o turno da noite. Antes acreditava que, por ser o turno do Arwin, o Líder da Guarda estivesse sendo mole demais. Com aquelas pernas curtas até uma criança deveria deixa-lo para trás na corrida. Klaus insistiu várias vezes para que Celeste o deixasse busca-la no atelier. Ela sempre retrucava dizendo que ninguém era estúpido a ponto de cometer um crime no turno do Arwin. Mesmo os pais dela diziam que Klaus estava se preocupando à toa. O tempo mostrou que o que parecia ser ingenuidade da parte dos Vankourt era na verdade uma confiança compartilhada entre vários moradores da zona leste. Arwin realmente fazia um bom trabalho durante o seu turno. Klaus sentiu um arrepio ao perceber a responsabilidade que tinha de não deixar um crime acontecer durante o turno do Líder da Guarda.

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