Ano de 481
Após sua chegada de uma longa viagem, Felia foi direto para o quarto e se trancou. Uma empregada tentou por um longo período entregar-lhe o jantar, até desistir e deixar a bandeja com uma tigela de sopa ao lado da porta. É com essa bandeja em mãos e um pequeno livro debaixo do braço que Felia encontra Cassius quando abre a porta, depois de ouvir sua voz.
- A comida está fria. - Disse o rapaz com firmeza.
Era difícil dizer se ele estava afirmando o obvio ou iniciando uma conversa. Cassius não era de conversa. É assim desde quando Khazin o trouxe em seu retorno da guerra no norte anos atrás. Embora seja apenas um ano mais velho ele sempre agiu com mais maturidade, de maneira confiável e excessivamente rígida. Características invejáveis em um combatente, porem abriram um abismo entre Felia e Cassius até encontrarem um assunto em comum.
- Não estou com fome. - Respondeu Felia encarando-o com a mesma firmeza.
Dificilmente um soldado do nível de Cassius seria intimidado por uma jovem de quatorze anos vestindo uma longa camisola amarelo-gema, mas ela adorava testar os limites do rapaz quando estavam a sós. Ao ver que ele não se deixaria abalar, deu espaço para que ele atravessasse a porta e entrasse em seu quarto.
Cassius entrou e como de costume vasculhou todo o quarto com seu olhar meticuloso. Felia se firmava no pensamento de que, como um membro da Guarda Real Cassius estivesse procurando por qualquer sinal de perigo. Sua empregada mais próxima certa vez sugeriu em uma conversa particular que talvez estivesse ele procurando por alguma peça intima esquecida sobre a cama ou coisa do gênero. Felia corava ao lembrar-se dessas palavras. Jamais poderia imaginar Cassius tendo tal comportamento. Contudo, era cuidadosa sobre estas coisas. Seria vergonhoso para uma princesa esquecer algo assim a vista, com um rapaz no quarto.
- Você esqueceu. - Disse Cassius.
Felia enrubescera. Seu coração disparou. Sentia como se a temperatura do quarto tivesse aumentado abruptamente.
- Do que você está falando? - Disse colocando grande esforço para não parecer desconcertada. Estava determinada a agir com naturalidade, não importavam quais fossem as próximas palavras de Cassius.
- Combinamos de ler o livro de contos da fundação do reino juntos. Você disse que me encontraria na biblioteca depois do jantar.
Calmamente, Felia caminhou até a cama e sentou-se da forma mais adequada que suas forças restantes lhe permitiram sem desabar. Sua pele cor de canela aos poucos recobrava o tom. Seu desejo era de chafurdar-se nos travesseiros. Lembrou-se das aulas de postura que tivera quando criança. Respirou fundo e respondeu pausadamente.
- Desculpe-me. Foi uma longa viagem.
Cassius encarou a sopa em silencio.
Felia aproveitou o momento para revisar o quarto mais uma vez em busca de 'algo' esquecido por aí. Era um quarto espaçoso, com uma grande cama de casal abarrotada de travesseiros. Pedira a uma de suas empregadas para remover sua coleção de bonecas que outrora enfeitara sua cama, logo depois da primeira visita de Cassius. Sentia-se solitária sem suas bonecas, mas agora tinha alguém com quem conversar. Por sorte, pouco antes dessa primeira visita, Felia havia remobiliado o quarto e escolhido moveis que davam a impressão de ser mais madura. Uma escrivaninha que usara pouquíssimas vezes até então, pois preferia fazer seus estudos na biblioteca, uma penteadeira, uma mesa de canto, uma cômoda com quatro gavetas e um largo baú onde guardava seus muitos lençóis, visto que a torre onde seu quarto fora construído exigia esse preparo. Tudo cor de pérola. Respirou aliviada ao ver cada coisa em seu devido lugar.
- Entendo. - Disse Cassius e caminhou em direção á porta.
- Por que está saindo?
- Deixarei que você descanse.
Foi como se tivessem amarrado o coração de Felia a uma pedra e lançado em um rio profundo. A garota saltou da cama e se pôs entre a porta e Cassius com os braços abertos.
- Você não pode ir embora assim. Quero dizer... o livro. Você não pode levar o livro. Digo... estou muito cansada para ler. Ordeno que leia para mim enquanto como a minha sopa.
Finalmente satisfeita com a sua escolha de palavras, Felia pegou a bandeja com o seu jantar que ainda estava nas mãos de Cassius e tomou novamente lugar em sua cama ajeitando-se entre os travesseiros e prendendo seu cabelo.
Cassius, um pouco confuso, arrastou o banco perolado da penteadeira para próximo à cama, ao lado de Felia. Abriu o livro e iniciou a leitura. Ela conhecia o livro de cor, ainda assim se deixava levar pela voz de Cassius e sonhava acordada com as batalhas e duelos descritos. Às vezes, por conta do momento, enquanto ainda com a mão erguida, e segurando uma colherada de sopa, parava esperando o desenrolar da história do antigo Rei. Porém, seu personagem preferido era o assassino que supostamente auxiliava o Rei pelas sobras. Todos diziam ser um mito criado para tornar a história mais impressionante, mas Felia quando criança acreditou nas palavras de sua mãe a alertando que a história de sua família poderia estar fortemente ligada a essa pessoa, ainda que não soubesse explicar como.
A noite passou rápida e o livro terminou instantes depois dos primeiros raios do sol invadirem o quarto.
- É melhor eu ir.
- Obrigada por hoje, Cassius.
Cassius assentiu e tomava a direção da porta quando parou e virou-se. Iluminado pelo por do sol, seus olhos se encontraram por um breve momento. O coração de Felia disparou como se tivesse acabado de descer as escadas da torre e subido de volta para o quarto correndo.
- Princesa, sobre a viagem... Tentaremos novamente no ano que vem. Estarei aqui para escolta-la quantas vezes forem necessárias.
Felia não queria falar sobre o assunto. Tivera uma excelente noite com Cassius e quase se esquecera daquele fiasco. No entanto, ao ver Cassius se expressar com tanta sinceridade assentiu e o observou com uma felicidade contida, enquanto ele deixava o aposento.
Não haveria muito tempo para descanso. Ainda assim Felia precisava dormir, nem que fosse um pouco. Seu pai não a perdoaria caso perdesse a recepção dos convidados para o baile anual. Um dos muitos deveres reais que Felia abriria mão com prazer. Como não era possível, melhor que estivesse com boa aparência.
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Deuses do Além
AdventureKlaus estava prestes a ser morto por um arqueiro misterioso quando uma chuva de laminas afastou o inimigo. Uma figura coberta por um capuz apareceu na entrada do beco, onde antes estava o arqueiro, completamente encharcada pela chuva. Quando olhou n...