24. Ele gosta de você

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Apesar da eventualidade, fui para minha última aula, o tempo passou mais rápido que as horas do turno inteiro, ótimo. Não vi Ethan depois que chegamos, fiquei procurando por ele, esperando perto do banheiro masculino, migrei para o corredor dos armários — onde ele costuma ficar —, mas nada. Estranhei, pois até as três mensagens que deixei, não foram respondidas.

Depois do passeio com Pete, Victor buscou-me e ressaltou as pautas da conversa de Joe com vosso advogado, já que eu não estava presente. Incrível como a situação nunca é favorável para mim. Procuro não pensar tanto em Joe e muito menos em Brett, apenas aprecio a neve escassa que só agora percebi que está caindo do lado de fora. Desço parte do vidro do carro e ponho a língua para fora, apanhando um floco minúsculo — como na primeira vez que vi o fenômeno.
O motorista ri do meu fascínio e faço o mesmo posteriormente, colocando a cabeça para dentro do veículo outra vez.

— Quer que eu venha te buscar? — O moreno pergunta depois de estacionar.

— Não é necessário.

— Ok. Me liga quando terminar, só para eu saber que está bem.

— E por quê não estaria? Ethan não é um maníaco — reviro os olhos, balançando a cabeça e ajeitando a touca em minha cabeça.

— Não foi o que eu quis dizer, me preocupo com você — balança os ombros.

— Está bem, se é só por isso, eu ligo. Agora tchau.

Victor acena e se vai. Viro-me para a fachada da grande casa e suspiro antes de tocar o interfone e ter a entrada concedida. O jardim está com um aspecto morto, mas tenho certeza que é por conta do frio, das outras vezes que estive aqui, as flores e demais plantas pareciam saltar e me dar as boas vindas.
Não havia ninguém na sala quando entrei, o silêncio insólito deixou-me intrigada para saber o que se passava. Despi-me de meu casaco e limpei a garganta no mesmo instante que a mãe de Ethan apareceu e me recepcionou. Ela abraçou-me de forma tão confortante que quase não quis soltá-la, mas o fiz, sorrindo e observando seu semblante. Parece mais disposta, não está lívida, abatida e muito menos cansada, creio, e fico feliz por isso.

— Ele está no quarto.

Simpatizo com um sorriso e sigo de maneira ininterrupta até o aposento de Ethan, batendo duas vezes e ouvindo sua voz baixa dizer "entre". Observo-o deitado na cama e olhando com total desprezo para o que passa na televisão, até me ver. Ele não abre o sorriso de sempre e nem exclama Cenourinha, apenas parece demonstrar da forma mais sutil possível, que está feliz com minha visita.

— Acho que alguém esqueceu do reforço — sorrio.

— Desculpa por isso — faz um sinal para que eu vá até ele.

Caminho em sua direção e deixo meu casaco e touca pendurados na cadeira de sua escrivaninha. Acomodo-me na beirada da cama e ele aconchega-se mais perto de mim, deixando a cabeça próxima ao meu ombro.

— Você está bem?

— Já percebeu que nossos últimos encontros estão sempre acompanhados de desculpas? — Ele ri, mas sem graça.

— Já — faço o mesmo. — Acho que somos problemáticos demais. Mas ainda não respondeu minha pergunta — ressalto.

— Meu pai voltou para a cidade. No dia em que eu levei você para o hospital — seus olhos estão fixos no programa de televisão.

— E isso é bom?

— Não — suspira melancólico. — Ele não costuma fazer visitas desde quando separou-se da minha mãe. Ela havia acabado de descobrir a gravidez da Carrie quando recebeu o diagnóstico. Leucemia linfoblástica aguda.

— Ela parece bem, hoje — Tento ser otimista mas a verdade é que gostaria de entender como ele se sente. Gostaria de saber o que dizer.

— Aos poucos ela vem apresentando melhoras, vamos consultar o médico daqui alguns meses para saber como anda o tumor.

Permaneço alguns segundos em silêncio até pensar em algo para dizer, quebrando a mudez que havia se instalado no quarto.

— O que seu pai quer?

— Dinheiro. Ele recorre a nós quando precisa, já que é um jogador assumido — Ethan passa as mãos no cabelo desgrenhado e ajeita as costas, sentando com a coluna mais ereta na cama. — Sabe o que é pior? Ela pode ir mais cedo que o esperado e eu não sei se estou pronto para isso. — Seus olhos estão imersos em lágrimas que ousam escorrer. É a primeira vez que o vejo desta maneira. Vulnerável.

— Não pensa assim — viro meu corpo para ele. — Minha mãe morreu em uma catástrofe, não sou a melhor pessoa para falar sobre... perdas — o que eu estou falando? — Mas, olha, sua mãe não vai morrer. Apollo e Carrie têm um ótimo irmão e você, sim, é um pai para eles — tento confortá-lo com minhas palavras. — Vocês vão enfrentar essa barra e, bom, mesmo não sendo muita coisa, estarei aqui para ajudar no que for preciso.

Ethan girou o corpo na minha direção e olhou-me nos olhos como se minhas íris verdes fossem o ponto onde a tristeza dele acabava. Ficamos alguns minutos — longos minutos — submersos nos universos únicos que eram nossas orbes no momento, até que Ethan estendeu as mãos e afagou meu cabelo. Ele penetrou os dedos por entre os fios e quando me dei conta, seus lábios já estavam nos meus, envolvendo-me num beijo instigante e complexo.

Meus olhos estão fechados e penso repetidas vezes sobre a maneira como hesitei por isso meros dois segundos antes de ceder. Está tão bom. Estupidamente bom. Sinto as células que eu sequer sabia que tinha se manifestarem em meu corpo, causando-me arrepios e fazendo uma energia surreal envolver-nos, especialmente quando uma das mãos do garoto traz-me para mais perto, segurando minha cintura. Esse é o meu limite. O limite antes do algo mais.

Você é sim, muita coisa, Heaven Sheppard — ouvir meu nome ao invés do apelido de sempre, saindo da boca dele, assim, depois desse beijo, é quase como ouvir a nona sinfonia de Beethoven em um dia chuvoso.

Ainda estou inerte, absorta no ato de segundos atrás, dividida entre o eu gostei e o não sei se foi certo. Na verdade, acho que não há nada certo neste momento, muito menos o rumo da nossa quase relação. Ele é mais um dos babacas daquele colégio ou este é apenas o meu pré-conceito sobre sua pessoa.
Recolhi minhas peças de roupa da cadeira e vesti-as antes de caminhar até a porta e acenar para Ethan, passando pelo corredor da ida da mesma maneira que na vinda, só que praticamente barrada por um rapaz, com aparentemente seus quinze anos de idade e cabelos castanhos bagunçados. Apollo.

— Ele gosta de você — riu como se soubesse o que havia acontecido no quarto. Será que ele observou pela brecha da porta?

Não tenho a chance de sair em minha defesa porque ele passa por mim e saltita pelas escadas. Amanda sai da cozinha e entrega-me um cupcake com confeitos coloridos, o bastante para me fazer sorrir e abraçá-la — outra vez — antes de ir embora.
"Para adoçar seu dia" foi o que ela disse antes de eu sair e praticamente me derramar em lágrimas. Não sei o exato motivo da comoção, talvez a saudade que sinto da minha mãe, talvez o que Ethan disse ou mais que isso, a possibilidade do mundo perder uma pessoa tão boa. São muitas as hipóteses que tenho em mente, mas nenhuma satisfaz-me ou conforta-me como gostaria — ou como deveria.

Joe não indagou absolutamente nada quando cheguei em casa, como vem sendo nos últimos dias. Subi para o meu quarto, banhei-me e aconcheguei-me embaixo de edredons quentinhos com uma caneca de chocolate quente. Tentei assistir alguns episódios de Criminal Minds, e digo tentei porque a maior parte do tempo, fiquei lembrando do beijo com Ethan. Não deveria ter sido assim. Mas, foi, até que eu pegasse no sono com a televisão ligada e o barulho de uma chuva gradativa que marcava o início da noite.

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