28. Nós

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Pouso minha xícara ainda preenchida com metade do conteúdo no criado mudo ao meu lado e recolho o aparelho, notando duas mensagens de Ethan. A primeira diz "Quero te ver", já a segunda, exprime sua confusão com o que aconteceu no ponto de ônibus (ou com relação à mim): "E quero entender você". Suspiro sem saber o que responder. Penso em diversas respostas, escrevo algumas e apago antes mesmo de enviar. Indiferente, acabo cedendo com um "Me encontre no parque", mesmo não sendo uma resposta do meu agrado. Ele visualiza quase imediatamente.
Salto da cama e a única coisa que faço antes de sair do quarto é calçar o par de tênis mais próximo à mim e enfiar uma touca na cabeça. Joe está assistindo ao telejornal e só nota minha presença no andar de baixo quando alcanço a porta.

— Aonde vai? — vira para encarar-me por cima do encosto do sofá.

— Vou me encontrar com o Ethan.

Não estou trazendo comigo o celular pelo fato de que gostaria de evitar ser rastreada a cada passo dado, mas infelizmente minha quase insignificante presença foi notada pelo patriarca.

— Assim? Parecendo um garoto?

Olho para minhas roupas. Não é porque estou parecendo uma skatista que não posso encontrar-me com alguém. Não sou obrigada a usar vestidos e sandálias o tempo inteiro. Gosto do simples. Do confortável.

— Dá um tempo.

Bato a porta depois de sair e ignoro os resmungos que ele brada atrás de mim. Não preciso de alguém tentando ser minha sombra. Passei toda minha vida sendo controlada, não tinha nem a confiança da minha mãe e agora que tenho um pouco de liberdade, não vou deixar um progenitor soberba tirá-la de mim.
Rapidamente, sigo para onde marquei com Ethan e surpreendo-me ao ver que ele chegou antes de mim. É provável que já estivesse pela vizinhança quando mandou-me as mensagens.

— Achei que não viria — Ele estende as mãos e ajuda-me a pular para dentro do bonde.

— Precisaria me dar bons motivos para isso — aconchego-me ao lado dele, encolhendo as pernas em cima do almofadado.

— Achei que tivesse dado. Agiu estranha comigo depois da aula — olha para a vista que temos da cidade.

— Desculpe por isso — pigarreio. — Vi você com a Olivia e achei...

Ele vira meu rosto para si, segurando em meu queixo, e dura cerca de segundos até me beijar. Solto o ar que parecia estar preso em meus pulmões e acompanho-o, mas afasto-me para respirar alguns minutos depois.
Me sinto tão tola por incomodar-me com o fato dele estar tão perto de Olivia, que comecei a pensar besteiras, a ofendê-lo mentalmente só por não gostar da loira.

— Por que fez isso?

— Eu gosto de você. Muito — Ethan justifica-se. — Tanto, que até me afastaria da Olivia só para o nós não ser prejudicado.

Existe um nós?

— Não, não é o que eu quero. Me desculpa por parecer possessiva, não foi minha intenção — Agora sou eu quem tento explicar-me. — Acabei pensando que estava me usando por estar carente e...

— Te usando? Eu jamais faria isso. Com ninguém. Somos mais parecidos do que pensei e isso me deixou ainda mais próximo de você, Heaven.

— Então só se aproximou de mim porque somos parecidos?

— Claro que não! Eu gosto mesmo de você — um sorriso torto enfeita seu rosto.

— Isso é tão clichê — rindo, viro o rosto para encarar as nuvens.

— Pensei que gostasse de clichês — Uma das mãos de Ethan alcança o dorso da minha esquerda.

— Não gosto.

— Mas está disposta a viver um — afirma erroneamente.

— Está equivocado — aponto. — Mas sobre isso, só o tempo irá dizer.

Ethan parece concordar comigo num simples gesto com a cabeça. Ele lança-me um olhar que por alguns segundos me mantém envergonhada, fazendo minha atenção voltar para a bela vista que temos enquanto deito minha cabeça em seu ombro.

A primeira vez que me relacionei com um garoto, tinha catorze anos. Foi um típico erro adolescente, desses que você comete involuntariamente e arrepende-se pelo resto da vida. Jeremy era o nome dele. Tinha cabelos flavos, olhos azuis, corpo esbelto e galgaz, sem contar o dom especial para fazer você se sentir inferior o tempo todo. Apesar de aparentemente gentil, o garoto era esnobe até o pescoço, costumava comparar-me às outras garotas da escola sempre que estava na companhia dele.
Jeremy e Ethan são antônimos. Não que eu esteja comparando-os, não sou esse tipo de garota, mas no momento me encontro reflexiva e pôr as informações que tenho sobre minha vida amorosa numa mesa, me parece bem oportuno.

Ethan gosta de rock, usa anéis, roupas pretas, uma vibe punk suave e dá apelido para as pessoas — por mais ridículos que eles possam ser. Já, Jeremy, costumava ouvir Mozart, calçar mocassins com um suéter amarelo que ganhou da avó, sua aura era arco-íris e flores e odiava tudo que fugisse de algum tipo maluco de padrão. Como por exemplo, manter suas meias de maneira monocromática. Não sei se éramos parecidos, já que só encontrei minha personalidade e estilo um ano depois, mas Ethan parece me ler melhor.

Durante alguns anos, todas as pessoas que me tocaram, machucaram-me. De todas as maneiras. Ethan foi a primeira pessoa que teve contato comigo sem que isso acontecesse. De alguma forma ridícula, isso me faz pensar que sou uma gema preciosa, que exijo ser tocada com total sensibilidade e parcialmente, até acredito que seja verdade, porém com todas as pessoas, e não somente comigo.
Também não gosto da ideia de ser extremamente sensível às pessoas e seus atos, a dureza alheia te deixa vulnerável a certos tipos de situações. No fim, você acaba percebendo que não tem escolha a não ser aprender a conviver com isso. E eu aprendi, mesmo que apanhando muito para que acontecesse.

Entre piadas e risadas, hora música, hora prosa, ficamos ali até o início da noite — às 06:00PM —, horário em que retornei para casa, acompanhada de Ethan. Entramos juntos e encontramos Joe fazendo comida, o que foi um milagre já que nós passamos a semana pedindo delivery.
O jantar foi agradável; risoto de cogumelos, bolo de carne, salada de ovos e vinho para acompanhar. Estava tudo muito gostoso e até o final da refeição, questionei-me o motivo pelo qual Joe não cozinhava mais vezes, sua comida é melhor que a de Amelia já fora.

Mais tarde, Joe recolheu-se e Ethan e eu ficamos deitados no sofá assistindo a Hellraiser, acompanhado por pipoca e almofadas. Apesar de empolgada com o filme, acabei pegando no sono depois do primeiro e após sentir carícias de Ethan em meu cabelo, não quis mais abrir os olhos. Relutante, saí do canto onde estava e me abriguei perto dele, podendo agora, inalar melhor o aroma cítrico de seu perfume.

Aos poucos, percebi sua imobilidade e ergui a cabeça para encará-lo. Ethan dormia serenamente e para minha sorte, seu braço ainda estava envolvo em mim. Apoiei a cabeça em seu peito e voltei a fechar os olhos, percebendo depois de alguns segundos, a presença de Joe na sala, que debruçou delicadamente um edredom sobre nós.

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