Capítulo 19: O expurgo

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A palavra expurgo parece ressoar em minha mente. Nossos comunicadores se ativam e ouvimos claramente quando Bradley nos ordena esse ato. Sua voz sai grossa, potente, invadindo nossos ouvidos, nossa mente, nossa consciência. Quase como se uma cortina de fumaça adentra-se em nossas cabeças, nublando nossa visão. Uma voz, não, várias parecem ecoar no fundo de nosso ser. Expurgo... Expurgo... dizem as vozes em uníssono.

Então, antes mesmo que eu pudesse perceber bem o que acontecia, eu estava me movendo. Passo após outro. Em frente. Uma dor de cabeça me invade, sinto ela pesando, meu corpo a formigar. 

Meus sentidos se desfocam, sinto-me como se estivesse a olhar um quadro dentro d'água, como se eu visse tudo que acontece ao meu redor por meio de um quadrado no meio de um oceano. Bolhas flutuam ao redor de minha consciência. Imagens brotam em flash diante de mim. Líquido. Vidro. Bolhas. Movo-me, estou em uma espécie de recipiente, minha consciência oscila, estou, ora acordado, ora dormindo, um ciclo interminável que regride ao infinito.

Como se tudo fosse programado, iniciamos uma corrida rápida e feroz. Sigo lado a lado com alguns dragões vermelhos. Ficando para trás, Bradley continua caminhando, dessa vez, ereto e com um passo firme.

Mais imagens flutuam em minha mente. Uma redoma de vidro, cheia de liquido. Vejo vultos, me assusto. Olho ao redor, tento focar a visão embaçada. Pessoas de jaleco do outro lado do vidro, quase em outro mundo. Uma dimensão paralela, diferente da que estou. Quase uma outra realidade. Mais vidros, outras redomas. Outros eu. Pessoas iguais a mim ou eu que sou igual a eles. Ou não serão somente outra parte de mim dividida. Se é que existe um eu, uma identidade separa, não sendo só uma máquina orgânica.

Os corredores passam depressa, empregadas levantam a cabeça assustadas com o barulho. Não fazem nada, acompanham com o olhar nossa passagem, depois voltam para suas obrigações. Minha cabeça dói. Não paro, continuamos correndo, não dou as ordens para meu corpo, mas ele reage sozinho, quase como se tivesse sido programado para isso. Feito para esse momento, só para isso.

um formigamento vai crescendo sobre meus membros. Trisco na máscara no meu rosto. Respiro fundo, preciso de ar. Bolhas flutuam, de novo na redoma. Minha mente transita entre o hoje e o ontem distante. Parece que estou em dois lugares ao mesmo tempo, vivendo novamente o ontem e o agora. O vidro se abre. Sou levado para uma outra máquina, agora seco. Está pronto, escuto dizerem. Olho ao redor, pessoas em jaleco, de olhares curiosos, beirando a animalidade. Sou levado, olho mais vidros, mais depósitos de outras coisas. Coisas como eu. Se é que ainda posso utilizar esse pronome em um sentido tão pessoal. Nessa subjetividade existente no ser.

A marcha continua. Escutamos passos. Nos posicionamos encostados na parede. Conversas dispersas, passos. Corredor a frente, dois guardas despreocupados. Usam roupas sociais. Sorriem e conversam, talvez estejam em ronda. Não fazemos sons. Dois tiros. Duas quedas. continuamos.

Minha cabeça dói. As vozes continuam a gritar em nossa mente, quase quebrando nossa sanidade. Em frente, dizem em uníssono. As seguimos. Demora poucos segundos até chegarmos a ala administrativa. Agora há mais guardas. Paramos. Agora nos movemos devagar. Lentos, atentos ao menor ruído. Armas em punho. 

Sala do presidente a alguns metros. Nos dividimos. Seguranças circundam o perímetro. O ar parece denso, minha mente se nubla. Avanço em direção do nosso alvo. O resto dos soldados se espalham pelas curvas e entradas. Sou seguido por mais dois dragões. Dois guardas pastoram a porta de entrada da sala. Caminhamos lentamente, sem nos escondermos. Desmanchando a aura feroz que nos envolvia a segundos atrás. Nos aproximamos, vemos um brilho de reconhecimento. Levanto a mão em uma saudação amistosa. Um deles balança a cabeça de forma afirmativa. 

— Precisamos falar com o presidente. Ordens do secretário-geral — digo, depois continuo: — Temos um recado. 

Digo sem se quer perceber o que as palavras significam. Tenho total noção do que faço, ciência do que digo, mas era diferente de um dia normal. Quase como se isso tudo já tivesse acontecido antes, milhares de vezes em flashbacks. Como se já tivesse sido planejado, cada palavra a ser dita, cada ação a ser realizada. Uma pontada na cabeça.

Suas mãos afrouxam-se, eles relaxam. Chegamos perto. Sinto internamente um relógio a tocar, um tique-taque interno. Tudo acontece rápido. Eles abaixam as armas, nós levantamos as nossas. Um único movimento rápido, o tempo para. Eles caem. 

Paro. Ficamos de guarda. Não demora muito até que escutamos os passos de Bradley. Todo o local está silencioso, não há barulhos. Somente a marcha constante do secretário-geral.  Ladeado por um guarda, ele se aproxima. Parece cansado, porém seu caminhar é firme, estava ereto. uma imagem forte. Ele estava agora totalmente vestido de maneira social. O corredor branco está claramente iluminado. Sombras longas se projetam dos homens em marcha. Tudo estava clara, porém, ainda assim, há uma mancha de escuridão de escuridão no rosto de Bradley. Ele encaminha-se diretamente para a maçaneta da porta. Os dois dragões que me acompanharam se posicionam em vigia. Estavam exatamente no lugar dos outros. Bradley abre a porta de supetão. O acompanho.

O presidente Underwood levanta a cabeça surpresa, sua secretário a alguns metros parece se assustar com a entrada. Ele olha diretamente para nós, há um ar de indagação em seu rosto. Ele respira fundo e diz:

— Então... O que significa isso?

Bradley sorri. Depois responde:

— Olá, caro presidente. Pensei que estivéssemos certos, não haveria guerra.

— Não haveria se eles ficassem quietos, eles fizeram isso. Me atacaram, te atacaram diretamente.

— Não importa, desfaça a ordem de ataque. 

— Não posso — O presidente sorri, parece se divertir com a situação, com o poder que possui. — Daqui a alguns minutos será realizado.

Ele levanta o braço, um ponteiro holográfico surge a sua frente. Daqui a dez minutos, ele diz. Parece tenso. O ar estava pesado, quase como se houvesse chumbo. A respiração é difícil. O tempo é pesado.

— Então me perdoará por isso. Você está sendo oficialmente deposto.

Underwood ri alto. Parece se divertir com as frases. Ainda com um sorriso, ele estica a mão e aperta um botão em cima da mesa.

— Não gosto nenhum pouco disso, mas tenho que chamar os guardas para lhe acompanhar a seus aposentos.

— Não adianta... Seus seguranças estão nesse momento desmaiados. Além disso, suas bases nucleares já foram ocupadas. 

Bradley estica o braço. Imagens holográficas flutuam no ar. Nelas, diversos soldados aparecem em posição. Pentágono, bases militares, centros administrativos. Todos. Soldados clones permanecem em posição. Pessoas, guardas e soldados americanos estão rendidos.

— Lamento dizer, mas você não é mais o presidente dos Estados Unidos...

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