Interferência

264 78 35
                                    


  Eu ainda me lembro daquela data. Jamais a esqueceria, mesmo que o mundo acabasse. Memórias não roubáveis eternizadas em meu Neocórtex. Pois a relação que tenho com ela é como o apego que as pessoas sentem por alguém que já faleceu, você sabe que passou, você sabe que não voltará, mas os seus sentimentos farão de tudo para não esquecer. Como se fosse a última súplica de quem pereceu.

20 de Outubro de 2013

  Me encontrava em uma travessia de trem, com o tronco encostando na catraca e o som ensurdecedor daquele animal selvagem de ferro zunindo em meus ouvidos. Estava junta a uma de minhas poucas amigas, Sônia, que ainda não haviam me abandonado. Como se o fato deu ter mudado de escola modificasse a nossa amizade, sem dúvida alguma, mais uma daquelas situações em que peneiramos quem "presta" e quem "não presta". Sendo uma pessoa de bom coração, e apreciando nossos momentos juntas, Sônia me acompanhava até a minha escola de vez em quando e eu retribuía o gesto.

- Você chegou a ler o novo livro dele? - me perguntava Sônia, com seus cabelos cacheados sendo agitados pela brisa daquela fria manhã.

- Não gosto muito deste autor, e não tenho tido muito tempo para ler ultimamente por causa das provas - respondi.

  Era uma meia mentira. Precisava estudar mais do que nunca, já que as provas finais se aproximavam, mas esta não era a desculpa perfeita para que não me restasse tempo. A verdade tinha relação com a minha mudança repentina de escola.

Ainda me pergunto se Sônia sabia disso.

  Com o fim do trem, a catraca se ergueu com o sinal de alerta cessando junto ao som irritante nos trilhos, e as pessoas rapidamente preencheram o vazio da travessia, apressadas, como se lhes restassem apenas mais dois minutos de vida. Como uma ironia do mundo, gotas de chuva começaram a cair do céu nublado e escuro daquela manhã, justamente quando havia esquecido de levar um guarda-chuva.

- Você trouxe guarda-chuva? Esqueci o meu em casa - declarou Sônia, e eu quase gargalhei.

- Era isso que eu ia te perguntar - disse, encarando a chuva que caía a nossa frente.

  Com olhares vazios e um ressentimento desconfortável permanecemos ali, debaixo daquela ponte que assemelhava-se a um viaduto, por alguns segundos. Observando as pessoas lutarem contra a chuva das formas mais variadas possíveis, e olhando com um toque de inveja aqueles que possuíam os seus abrigos móveis em mãos.

Levei meu braço ao rosto e conferi a hora. O relógio marcava 6:28.

- Acho melhor eu seguir sozinha daqui em diante - comentei, e Sônia me olhou de forma esquisita, torci para ela não ter entendido errado a mensagem, mas por não confiar na sorte completei - No caminho pra sua escola tem mais marquises, não há necessidade de você se molhar por minha causa.

Fiz de tudo para forçar um sorriso, mas ainda assim ouvi um leve "Mas Lily..."

- Você tem certeza? - indagou minha amiga, finalmente tirando a parte de baixo de sua cabeça do suéter de gola alta, com olhos que pareciam ver através de mim.

- Sim - falei, já me distanciando e sentindo os tiros das nuvens furiosas, com acenos de despedida - A gente se vê mais tarde!

- Ok!

"Mal sabia eu..." viria a pensar mais tarde.

  Com as mãos cobertas até os dedos por meu casaco, de grossura exagerada, e as pernas aquecidas por uma calça longa, a única parte de meu corpo que sofria com o frio e a umidade penetrante era a cabeça. Nunca gostei de toucas ou boinas, mas por um breve momento desejei. Não por coisas tecidas como estas, e sim por um capacete de moto, pois somente assim saciaria o meu desejo de calor e proteção.

  Meus malditos cabelos não paravam de esvoaçar, como pipas prestes a alcançar os céus. Uma pipa loira e emaranhada, para ser exata. Onde estavam os meus grampos de cabelo? "Talvez estivessem juntos com a paciência para pentear os cabelos depois" pensei.

- E pensar que essa bendita chuva já me fez querer mais coisas do que no natal! - praguejei ao vento, seguindo uma trajetória perpendicular em uma rua lotada.

  Em meio aquela chuva infernal, e amaldiçoando o prefeito por não ter instalado mais marquises, senti algo vibrar em meu bolso. Era meu celular.

  Com passos ininterruptos atendi aquela ligação infortuna, isto porque vi que se tratava de minha mãe. Logo ao ver seu nome fiquei surpresa, pois ela raramente me ligava. Já apreensiva apertei o botão de atender, e com o aparelho próximo ao ouvido esperei ouvir sua voz, doce e reconfortante. No entanto...

Só ouvi ruídos. Um som estranho.

- Mãe?! - gritei, com o coração acelerado. Correndo feito louca enquanto era bombardeada pela chuva.

  Continuei gritando. A chuva caindo. Meus pés congelando. As pessoas trombando. Minhas pernas correndo. O celular no ouvido.

  Chamei por minha mãe até o fim. E então, veio uma luz, sabe-se lá de que fonte, engolindo as pessoas apressadas, os carros desgovernados e o céu choroso. Nada mais consegui ver.

  Meus olhos se contraíram instantaneamente, como um reflexo. E naquela escuridão, cercada pela luz, senti uma sensação que jamais sentira. Não era dor nem prazer, mas meu corpo parecia queimar, sendo consumido por aquele toque em meu corpo, atravessando os meus agasalhos. Pensei em abrir os olhos, mas não conseguia. E com uma dor enorme em minha cabeça minha consciência se foi, ainda esperando uma resposta do outro lado da linha.

"Mal sabia eu..." eu pensaria mais tarde, e completaria:

"Mal sabia eu... que aquele era o fim do mundo".

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora