Disforme

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  Como parte da curiosa vida humana, todos nós temos ou já tivemos pesadelos. Visões sem consciência durante o nosso sono, onde os piores e mais terríveis cenários se tornam possíveis. Por serem criações de nossa mente os pesadelos também podem ser relativos aos nossos medos, para alguns, altura, palhaços, escuridão, monstros. Mas, sem sombra de dúvidas, pesadelo algum conseguiria me assustar mais do que aquele momento.

  Perdida na escuridão. Em uma fábrica abandonada. A criatura me observava. E então, os monstros chegaram para me trazer um vislumbre de um verdadeiro pesadelo.

  Eu apontei a lanterna, e sob a luz eu pude ver um deles. Tinham a pele esquisita, como se fosse uma nova camada epitelial, de cores que oscilavam entre o vermelho e o preto. Pareciam órgãos expostos. Os braços da criatura eram uma garra enorme, e na ponta, uma lâmina sangrenta que se assimilava ao material de uma unha. De suas costas, braços se projetavam. Seus pés, tinham o formato apropriado para se correr, como feras abatedoras. Eu poderia passar horas descrevendo as criaturas, pois cada uma era diferente, com traços e peculiaridades distintas e macabras. Para resumir, eram monstros disformes.

  Com medo de irritar o monstro, que cobriu o rosto com a garra para proteger-se da iluminação repentina, desviei a lanterna.

"Tarde demais" pensei, ao ver que a criatura me encarava.

  Meu corpo estava tremendo tanto que temi ter um ataque súbito do coração, então pensei em imitar os pequenos animais que escapam de seus predadores aéreos. Permaneci o mais imóvel que pude, apesar de que nunca fui boa em brincar de "estátua", acreditando que as feras não notariam mais a minha presença.

  Uma sombra se separou das outras, movendo seus pés lentamente como se tivesse todo o tempo do mundo e arrastando uma das garras no chão, provocando um som agonizante que servia como um prelúdio da morte. O monstro vinha na minha direção. Ele sabia onde eu estava, mesmo no escuro.

"Vai embora! Vai embora!" Gritei repetidas vezes em meus pensamentos, fazendo inúteis esforços mentais para afastar o monstro.

  Logo, a criatura estava de frente para mim, devia ter um pouco mais de dois metros, de pé. Tentei diminuir a minha respiração acelerada, mas meu corpo já nem respondia aos meus estímulos. Não havia escapatória, era fim de jogo.

  Sabendo que estava próxima do fim, comecei a tentar visualizar coisas boas. Minhas caminhadas com Sônia, o dia em que fomos em um show de rock, os belos livros que tive a chance de apreciar, o cheiro da comida de minha mãe... eu poderia listar um bilhão de coisas, mas como para um moribundo, não restava mais tempo, apenas arrependimentos e lembranças...

  O monstro se esticou um pouco e ficou cara a cara comigo, tinha olhos completamente negros, dois furos esquisitos no lugar do nariz, e uma boca putrefata com dentes podres, mas ainda afiados. Com uma ofegante respiração, a criatura soltou um ar gélido e nojento em meu rosto.

  Queria fechar os olhos, como uma última tentativa de fuga, mas não conseguia. Só me restava esperar.

  A criatura ergueu sua garra com velocidade, soltando um grunhido assustador, no entanto, antes que a lâmina toca-se meu pescoço algo aconteceu.

  O ser disforme foi arremessado para longe, algo havia saltado sobre ele no exato instante em que me mataria. Foi tudo muito rápido, mas meus olhos logo capturaram a imagem de duas silhuetas lutando às escuras.

"O monstro foi atacado... por um semelhante?"

  Como uma briga de símios, a criatura que me atacara usou seus pés como arma fundamental para se afastar do oponente. Os dois lançaram suas garras ao ar, tentando acertar pontos vitais, e então, um dos indivíduos soltou um berro de dor. Com o abalo daquele som sinistro eu recuei alguns passos sem rumo feito uma bêbada, como se nem pisasse no chão, com certeza ainda não capacitada para fugir.

  Após mais um ataque brutal, o monstro que gritou de dor pereceu na escuridão, e um liquido começou a se alastrar pelo local até chegar aos meus sapatos. Sangue. As outras criaturas ao longe, que pareciam observar tudo como espectadores de uma tourada, se puseram a correr. Em vez de me atacarem, os monstros saíram da fábrica, estavam assustados.

  Voltei a fitar a silhueta distorcida do ganhador. Braços saindo das costas, pés selvagens, uma posição carcomida, um único braço em forma de garra. A criatura sentada no sangue pareceu olhar para mim, olhos negros e medonhos, me analisando, como se eu houvesse me tornado o prêmio para a sua batalha. Sim, eu não havia sido salva, aquele monstro só não queria perder o banquete. Foi o que pensei.

  Devido a alta tensão em meu corpo e a perseguição implacável que realizara para chegar ali, eu estava exausta. Sem hesitar, eu me sentei entre as peças de metal dispersas no chão e o sangue do último monstro. Encostei as costas e a cabeça em um maquinário, e com os olhos perdendo o foco bem devagar, vi a criatura se aproximar de meu corpo.

"É ele...!" Meus devaneios alarmaram ao encarar a face e a silhueta do ser disforme "É ele que eu perseguia e que se escondeu nas sombras!"

  O monstro que me salvou era o mesmo que eu havia seguido até ali, só então me dei conta disso.

  Minha consciência começou a me deixar, mas antes que isto acontecesse, o monstro se sentou frente a mim. Com o corpo coberto de sangue e fuligem, e os olhos emitindo um brilho diferente do que vira antes, ele começou a gesticular sua boca. Apenas grunhidos saíam, mas a criatura parecia se esforçar para algo, como se acreditasse que eu poderia entendê-lo. Como se pudesse falar.

  Mas foi quando os meus olhos se fecharam, sentindo o frio do metal em minhas costas, o calor do sangue em minhas pernas, e o cheiro forte de morte, que eu jurei ter ouvido aquela simples e clara palavra em minha língua habitual.

- Ajude... me...

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora