Impossível

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  Uma fina chuva caiu durante a noite. Não tão forte quanto a última, apenas acompanhada de intensas ventanias que nos eram avisadas pelos sons do chacoalhar da água e das telhas. Pingos gotejaram do teto cheio de falhas sem parar, mas acredite ou não, nem isso me impediu de dormir.

  Depois de conversar brevemente com Marco, eu continuei sentada ali, ao seu lado. Não havia para onde eu ir. Não havia para onde ou quem eu voltar, pelo menos não naquela época. O homem também não trocou muito mais palavras comigo, talvez por ter se dado conta de quão abaladora a verdade fosse para mim, ou talvez porque quisesse fugir de meu rosto, da recordação persistente de minha tia, que parecia assombra-lo.

  Quando a escuridão dominou por completo o laboratório, não me deixando ver nada mais que o brilho do luar através do telhado, uma luz fraca surgiu à minha frente. Era Marco, com o celular nas mãos. Ele me deu o que parecia um cobertor, não soube identificar o que era, e disse que dormiria do outro lado do lugar, que era pra lá de extenso.

  Com o corpo não suportando mais nenhum segundo em alerta, eu baixei minha guarda e me aninhei no pano que me dera, fugindo desesperadamente do frio que me levou a ter terríveis pesadelos durante o sono.

  Mas naquele momento, não havia pesadelo pior do que acordar.

  Despertei na manhã seguinte com uma formiga andando em meu rosto, saltei de imediato enquanto estapeava meu rosto no susto. Dei graças aos céus por realmente se tratar de apenas uma formiga. Foi enquanto eu me assustava, com a lembrança da anomalia da fábrica abandonada, que percebi que dormira enrolada no jaleco branco de Marco.

  Me levantei, dominada pela fúria e o desconcerto. Mas como o desânimo de um jogador de beisebol após o terceiro strike. Todos estes sentimentos se dissiparam quando meus olhos captaram a imagem do homem encolhido contra a parede, tremendo, ainda resistindo ao frio provido da noite.

  Voltei até onde dormira e peguei o jaleco, e delicadamente, coisa que era difícil para mim considerando o quanto era estabanada, o cobri com ele. Não o acordei. Não o julguei. Não disse mais nada. E a desconfiança e o medo morreram.

  Após um longo tempo, quando eu já até assaltara um pouco o estoque de alimentos do laboratório, Marco despertou. O cientista, com uma expressão um pouco mais revigorante, veio me saudar.

- Bom dia!

  Parecia outra pessoa quando comparado a imagem de tristeza que representava anteriormente.

- ...Bom dia.

  Se me perguntasse o motivo deu ter ido até aquele laboratório antes daquela hora, eu provavelmente não saberia responder. Por alguma razão, algo naquela pessoa havia me feito lembrar dos meus dias de lamentos, fazendo-me esquecer até da razão de estar ali. O rosto sem sorrisos de Alexander apareceu em minha cabeça, e eu me lembrei.

  Eu tinha de perguntar, o mais rápido possível, sobre 'aquilo'.

- Eh... Marco? Não é? - me fiz de desentendida, apenas pelo capricho de ter certeza do que vira antes.

- Sim. E qual seu nome?

- Oh - suspirou o homem, percebendo que ainda não havia se apresentado e surpreso por eu já saber seu nome - É sim. Marco Nicolaevich.

  Ele não aparentava ser descendente de estrangeiros, muito menos pelo sotaque, mas pelo sobrenome foi isso que supus. Marco pareceu querer estender a mão para me comprimentar, mas hesitou, e minha apresentação cortou suas falas como um manejo de espada. Não foi a minha intenção.

- Leslie Von Gardenni.

- Gardenni hein... - murmurou Marco, como se estas palavras sugassem a sua força e vigor só de ouvir.

  Resolvi mais uma vez, desta vez intencionalmente, lhe cortar.

- Então Marco, gostaria que hoje ouvisse o que tenho a dizer e que respondesse às minhas perguntas.

  Não houve espanto nos olhos do homem, ele já esperava isso, então disse 'tudo bem' e começou a caminhar. Eu havia pedido que conversasse comigo, mas aparentemente ele queria me mostrar algo. Passamos por várias mesas brancas, e após adentrarmos em uma sala cheia de azulejos, um tanto grande, nos deparamos com um verdadeiro laboratório. Cheio de equipamentos. Microscópios. Tubos de ensaio. Pranchetas. Mas sem dúvida não era um que se encontrava em qualquer lugar, haviam grandes maquinários especiais em outras salas, que sobreviveram ao tempo devido a proteção extra do local, me fazendo sentir-me na própria SERN.

- Esse lugar é incrivel - eu deixei escapar, maravilhada com tudo que via.

- Sim - concordou Marco, com um sorriso amargo, evidenciando uma ponta de arrependimento - foi aqui que tudo começou... ou seria melhor dizer que, foi aqui que tudo terminou.

- Como aconteceu afinal? Criaram uma máquina do tempo com defeito? - sugeri, tentando animá-lo para que não começasse a chorar novamente.

  Marco enfim parou em frente a uma mesa, onde estavam vários papéis espalhados, um "ultramicroscópio", e alguns objetos que não soube reconhecer. Ele passou de forma terna a mão na mesa, de material desconhecido para mim.

  "Era ali que ele trabalhava" pensei.

- No dia 02 de outubro de 2013, o presidente do nosso instinto, Alcadimir, anunciou ter posto as mãos em algo fantástico - começou a contar Marco, sentado em sua mesa, como se fosse um velho hábito, olhando para o chão como se pescasse lembranças remotas - Como um mero cientista, a pouco saído do cargo de estagiário, não pude saber o que era. Apenas algumas pessoas sabiam o que era.

  Recordei da placa do lado de fora, e reconheci o nome.

- Mas ai - continuou, com uma curta risada - ele nos revelou o que era. Para ser mais exato, do que se tratava, mas não de onde viera.

- E o que era?! - perguntei, tremendamente curiosa.

- Partículas do tempo.

- Que diabo é isso? - não resisti a dizer isso.

  Marco me lançou um rápido olhar irritado, mas logo retornou, animado, a falar.

- Era assim que eu as chamava. Não sabíamos direito do que se tratava, mas Alcadimir nos garantiu pessoalmente que aqueles eram vestígios do que poderia ser a chave para o tempo.

- Por que ele tinha certeza disso? - indaguei.

- Eu nunca soube. Mas realmente, aquelas partículas pareciam ter o poder de algo. Emitiam minúsculas ondas e, volta e meia apareciam e desapareciam. Por isso, passei a chamá-las assim, e começamos a pesquisá-las a fundo com o gordo financiamento de nosso presidente.

  O homem desceu da mesa, voltando ao melancolismo, e dirigiu-se até uma parte mais aberta da sala, para poder visualizar melhor o lugar. Usando apenas a sua mente, ele parecia ter voltado realmente no tempo. Olhando para os lados, para o passado, Marco enxergava seus companheiros caminharem e discutirem. Um passado de apenas algumas semanas para ele, mas anos e anos para o mundo.

- Mas foi na manhã de 20 de outubro que aquilo aconteceu...

  Marco ficou em silêncio e ficou de costas para mim.

- O que aconteceu?! - falei, quase gritando.

- Um raio.

- ...

  Seu rosto surgiu por cima dos ombros, e ele apontou para o microscópio.

- Nós estávamos pesquisando as partículas do tempo... mas eu... sai por momento desta sala com o equipamento, que é protegida contra esse tipo de coisa - não sabia se chorava, pois escondia seus olhos, mas pelo tom de sua voz, eu é que desejei fazê-lo - ...foi então que um raio atingiu o laboratório.

  Fiquei sem palavras, sem reação alguma, enquanto aquelas palavras ecoavam sem parar.

"Foi um acidente"

- As partículas irradiaram e o tempo avançou - confessou Marco, soluçando sem parar.

"Não há como voltarmos"

- Fui eu... quem destruiu este mundo...

"É impossível"

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora