Meio Monstro

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  Todas as coisas que haviam sido erguidas no mundo, frutos de empenhos das mais variadas civilizações, as quais necessitaram de bilhares de anos para existir, foram desmoronadas, jogadas no chão do esquecimento devido a um abalo do tempo. Dizem que o tempo cura tudo, quem sabe também não destrua.

  Mesmo que a humanidade tenha se feito em cinzas, o calor dos incógnitas continuava a arder contra as novas adversidades desta era apocalíptica onde o sangue marca os nossos passos para o futuro.

  Após Serena e eu tomarmos banho, ambas dormimos em um quarto da mansão. O sono demorou a vir, e isto já era esperado considerando os horrores que víramos no dia anterior. Corpos em estados lamentáveis e monstros mergulhados em sangue seco. Mas para resolver tal problema, devo dizer que a exaustão foi uma tremenda aliada.

  Quando despertei, foi com o som de objetos sendo revirados, então logo abri os olhos e me levantei. O quarto em que dormimos era enorme, com um chão coberto por um tapete felpudo e um lindo espelho do meu tamanho na porta, e as paredes possuíam desenhos de nuvens em relevo. Haviam duas camas, um criado mudo e dois guarda-roupas de madeira brancos.

  Um tanto confusa com o barulho que ouvira, saí de debaixo das cobertas e avistei Serena em frente a um dos guarda-roupas, além de várias roupas e caixas espalhadas ao seu redor. A janela estava aberta, e pela luminosidade do quarto e o balançar das cortinas pude deduzir que já era meio-dia.

- Tenho certeza de que tinha uma aqui... - falava a menina consigo mesma, completamente perdida entre os cabides de casacos e calças.

- Ehh... Serena? - tentei chama-la para entender o que se passava - O que está fazendo?

- Ah! Você finalmente acordou. É que eu estava procurando uma calça que servisse em você - disse a menina com um sorriso o qual jamais vira em seu rosto severo.

- Calça? Pra mim?

  Ainda estava um tanto atordoada, pois havia acabado de acordar, e só então me lembrei de que não usava uma.

- A sim! Não precisa se preocupar com isso.

- Claro que preciso!! - gritou Serena, parecia preocupada com a minha reação - Você está para conhecer uma pessoa lembra-se? Não fique andando por aí assim!

  Eu realmente pensei em lhe dizer que, apesar de tudo, me sentia mais confortável assim. Mas ela infelizmente tinha razão, o mundo podia estar beirando o fim mas isto não era desculpa para eu perder a vergonha e o respeito próprio. No entanto, reparei também que algo mudara em Serena, pois só agora ela se preocupara comigo. "Acho que ela não me vez mais como uma inimiga" pensei.

- Ok, você tem razão.

  Na verdade, eu cheguei procurar em roupas na minha casa mas elas não estavam em um estado aceitável, e as de Sônia não me serviram (pois ela é um tanto mais baixa que eu, talvez).

  Depois de vestir um short preto, o qual Serena insistiu que eu usasse dizendo que 'combinava' comigo, apesar deu não entender isso, nós nos dirigimos ao quarto ao lado, onde o irmão dormira. O garoto não estava lá, e tudo estava um caos de tão desarrumado. "Ele fez isso numa noite?". Descemos as escadas, e somente então vimos Alexander na cozinha, comendo um pão velho e aparentemente duro.

- Estavam dormindo até agora? - perguntou ainda de boca cheia, tentando digerir aquele café da manhã intragável.

- Bom dia pra você também - lhe saudei, sarcasticamente.

  Como tínhamos pressa, recolhemos nossas posses e deixamos a mansão após um rápido café da manhã. Alex se conteve para não fazer piada de minha roupa nova, pude ver isso em seus olhos, enquanto que Serena estava mais energética do que antes, ameaçando a nós dois de um murro na cara.

  A noite que passamos naquela casa foi tremendamente divertida e crucial, pois de alguma forma me sentia mais próxima dos dois, mas mal sabia eu... que a apenas tristeza nos aguardava.

* * *

  Com o pé de volta a estrada, Serena, Alexander e eu caminhamos por mais umas 3 horas, tendo apenas duas paradas rápidas para descansar. E como o vislumbre de um oásis, felizmente não uma miragem, no deserto, nós chegamos na tal cidade.

  Alex nos guiava um pouco a frente, parecia conhecer o lugar como a palma de sua mão. As condições do lugar não eram muito diferentes da de minha cidade natal. Corpos em ruelas estreitas, pontes derrubadas formando ilhotas na água, prédios caídos criando pequenas muralhas, e casas e lojas arrombadas. Um cenário já bem familiar.

  Antes que eu percebesse, estávamos em um beco sem saída onde um trailer bem antigo encontrava-se no fim. Aquela velha sensação de estar sendo vigiada voltou a me assombrar, mas vendo a tranquilidade de Serena tentei me convencer de que estava segura.

  Os sons de nossos passos cansados ecoavam pelo beco, como se avisassem a nossa aproximação a cada pisada no concreto. Mesmo assim, quando nosso guia parou subitamente em frente ao trailer enferrujado e seguimos o gesto, ele gritou por alguém.

- Eleonor! Eleonor Rockstach!

  Uma cortina do trailer se abriu do lado de dentro, como se quem quer quem fosse estivesse nos inspecionando ou se certificando de quem éramos. Em seguida, um rangido violento veio do metal do trailer oxidado. A porta enfim se abriu, revelando para nós uma existência da qual eu jamais acreditaria que existisse.

- Oh, então é você Alex - disse a mulher, com algo parecido com um sorriso - é bom vê-lo de novo.

  Fiquei pasma, quase sem saber o que dizer, além de constatar o óbvio.

- A-A senhora... é uma anomalia! - exclamei.

  Eleonor era metade humana, metade monstro...

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora