Mundo Morto

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  Com um bocejo desanimado, meus olhos se abriram e viram a luz cálida do amanhecer acordar este mundo morto cuja humanidade fora dizimada. Apenas uma greta da abertura daquela janela foi o bastante para eu me lembrar de onde estava. Em que época estava. Uma realidade tão trágica que meus pesadelos se quer ousavam imitar.

  Me sentei na cama, de lençóis brancos, macia e suave. Reparei no estado do quarto, com prateleiras cheias de livros e as paredes lotadas de fotos, e pensei em como eram os dias de minha melhor amiga ali. acordando todos os dias com o piar de pássaros e o vislumbre destas imagens. Sim, esta era a casa de Sônia.

  Por algum motivo era doloroso permanecer naquele lugar. Diferente de minha casa, ele não me trazia recordações, pois ali eu só conseguia pensar em Sônia, e de certa forma me arrependia de não ter contado tudo a ela como uma verdadeira amiga...

- Talvez eu devesse ter lhe dito... que meu pai faleceu... - murmurei, com uma fina lágrima cruzando meu rosto, enquanto encarava um quadro de minha amiga, com sua pele negra cintilando e seus lábios finos esboçando um sorriso tímido.

"Foi por causa da morte de meu pai que minha mãe chorava. Foi por isso que as dívidas em nossa casa acumularam. Foi por isso que eu tive de mudar de escola. Foi por isso..."

  Mas aquilo não passava de arrependimento, um sentimento inútil mas que estava a se acumular como uma bola de neve.

"E juro... eu juro que ainda vamos nos encontrar de novo" prometi em meus devaneios, usando cada célula do meu cérebro para me fazer acreditar nesta mentira.

  Com uma chama que começou a queimar dentro de meu peito, enxuguei meu rosto e me levantei da cama. Abri as cortinas e encarei o apocalipse através da janela. Havia adormecido apenas de camisa, e por já não ligar para nada, peguei meu casaco e deixei aquela casa. Desci os degraus da casa e a ladeira, que levava ao centro da cidade.

  Observei as manchas de sangue nas ruas e a escuridão no interior de tudo que era feito de concreto. As nuvens agitadas estavam a formar uma chuva passageira, como se um deus quisesse lavar os pecados que cometera em sua criação, agora obscurecida pela calamidade. As gotas começaram a cair, formando poças de água marrom devido a sujeira da terra profanada pelo caos. Como um costume enraizado em mim, corri para debaixo de uma marquise de material enferrujado, torcendo para não cair em minha cabeça. Era neste cenário caótico que meus dias estavam a correr, em um futuro distópico de um mundo fantasma, onde somente eu resistia as adversidades da vida.

07:29 am - 04 de Fevereiro de 2307

- Como isso aconteceu? Como...? - me perguntava, como se uma voz pudesse exclamar através da chuva a sua resposta.

  Após descobrir que havia viajado para o futuro tudo fez sentido, como o último testemunho em um tribunal fictício. As casas e os prédios não foram bombardeados ou coisa do tipo, eles simplesmente envelheceram. Devido aos "agentes da natureza", chuvas, ventos e até terremotos, muita coisa se modificou, destruindo as amadas criações do homem moderno. Mas, um fato que não deixei de perceber foi o que desmaterializou toda a minha esperança, como uma arma de raios. Sem dúvida alguma eu estava no futuro, e como fiz uma viagem no tempo era possível eu voltar para minha época, no entanto...

"Não é apenas esta cidade que está neste estado. E sim o mundo inteiro... o que significa que..."

- Eu estou sozinha neste planeta - pensei em voz alta, olhando para o meu reflexo em uma poça, ondulando com os pingos e se desfazendo.

  Eu não fazia ideia de como tinha viajado no tempo, e por não haver mais ninguém na Terra, não tinha alguém a quem recorrer.

- O que vou fazer...? - disse ao segurar meu estômago que protestava de fome, com uma expressão amarga em meu rosto - Já quase nem tenho mais o que comer, vou acabar morrendo de fome.

  Em minha casa a despensa e a geladeira estavam vazias, e muito pouco pude encontrar na moradia de Sônia, o que com custo me alimentou durante estes dias. Comidas em lata realmente duravam... ou era isso que eu pensava, na esperança de não ter um problema gástrico por comer coisas estragadas. Eu poderia muito bem invadir uma casa em busca de comida, afinal todos estavam mortos, mas por algum motivo senti que encontraria o mesmo cenário precário. Ou talvez só estivesse com medo de achar algo pior...

  Restos de comida industrializada, alimentos de validade vencida, e latas escondidas em algum canto. Tudo dentro de geladeiras, despensas e armários quebrados ou cortados por objetos supostamente esquisitos. Valiosidades alimentícias, sobreviventes ao tempo, aprisionadas em casas imaculadas.

- Espere! É isso! É isso! - comecei a gritar, como se houvesse tido uma epifania esclarecedora.

  Me pus a correr, refazendo meus passos de volta para a casa de Sônia, a qual estava em um melhor estado que a minha e ainda guardava algumas coisas úteis.

- Preciso de uma lanterna! E se possível uma arma! - voltei a gritar, com o sangue fervendo e o corpo esfriando na chuva.

  A resposta para tudo sempre esteve diante de mim, eu apenas ainda não havia me dado conta. Pois como em uma charada, eu precisei de todas as pistas para encontrar a resposta certa. As marcas de garras e o vulto que vi, tudo isto deixava uma coisa evidentemente clara: eu não estava sozinha!

  Se a comida desapareceu, se alguém arrombou as casas, havia pelo menos mais alguém neste mundo. E sem dúvida alguma, não estava muito longe.

  Meu coração palpitava forte com esta notícia, mas eu sabia que poderia estar indo para a toca do dragão. Para mais uma armadilha de meu infeliz destino. Afinal, quem diabos rasgaria a minha roupa? Oque eram exatamente aquelas marcas de garras?

  Foi seguindo este raciocínio que eu recordei de algo que quase me fez parar no meio da ladeira, debaixo da chuva insolente. Mas mesmo assim eu prossegui. Precisava investigar mais sobre este mundo envelhecido e continuar acreditando que ainda havia uma chance, mesmo que mínima, de tudo voltar ao normal.

Mas ainda assim, aquela recordação fez o meu corpo se arrepiar.

"Os cadáveres que eu vi nas ruas, eram recentes..."

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora