Coincidência

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  Desde o início eu estava sendo controlada pelo destino, ou resistindo a ele se considerar os altos e baixos que passei. Era até aquele lugar que eu deveria ir. O laboratório. Encarei monstros disformes nas sombras, enfrentei pessoas armadas e tive de assistir ao enterro de meus amigos. Gostaria de acreditar, que tudo aquilo não passaram de eventos para aumentar a minha experiência em algo. Para me fortalecer. Mas sabia que isso não era verdade.

  Eu precisava salvar Eugênio, sua filha, Eleonor, Serena, o mundo...

  Mas não conseguia salvar nem a mim mesma. Sempre foi assim.

  Tudo, desde o começo, resumia-se em nosso encontro. Entre mim e este homem choroso de jaleco branco, e o soar de meu fracasso final veio junto aos seus lamentos vazios.

  "Gostaria de poder voltar no tempo" era no que eu pensava o tempo todo.

  Prossegui meus passos pelo salão, um tanto indiferente ao cientista que já nem olhava mais. Havia várias máquinas e ferramentas esquisitas pelo lugar, que por algum motivo me lembraram uma oficina de carros, onde meu pai sempre me levava após um passeio para dar uma revisão. Mas ao contrário de um local apertado onde um mecânico parafusa carros, aquele era um lugar bem grande, o suficiente para se fazer cede de um baile de formatura.

  Cruzei uma prateleira de frascos e parei a poucos metros do homem. Pelo fato de já estar ficando com calor, apesar de encharcada pela chuva, naquele lugar abafado, joguei a mochila no chão. Ironicamente ela quase acertou o cientista que levou um tremendo susto e recuou de costas.

  "Ele ainda não tinha me visto?" pensei. Também estava surpresa com aquilo, afinal eu passei bem na frente dele. Mas pelo visto, sua atenção estavam totalmente voltada para os seus pensamentos.

  Nossos olhares se encontraram, mas por alguma razão, talvez por causa do seu último lamento, eu o ignorei.

- Q-Q-Quem é você? C-Como chegou aqui?! - perguntava ele, gaguejando sem parar, como se tivesse levado um balde de água fria.

  Cansada da grande caminhada que fiz desde o túmulo de Serena até ali, pensei em me sentar no chão mesmo, pois o homem fazia o mesmo então provavelmente estava seco. Porém, antes que executasse este ato, a minha tentativa de ignora-lo um pouco foi por água abaixo.

Percebi que o cientista me olhava de cima em baixo, com a boca aberta e uma expressão abobalhada. Corei no mesmo instante.

- O-Oque está olhando seu pervertido?! - grit ei, sem pensar direito.

  Talvez eu estivesse exagerando, mas aquilo realmente me pegou desprevenida. Afinal quem se interessaria por mim nas minhas condições? Suja de terra e sangue, molhada e maltrapilha. Sem falar que ele era um adulto! Isso me deixou mais assustada do que agitada. Dei alguns passos para trás, apreensiva, agradecendo silenciosamente a Serena por ter mudado meu antigo visual.

- Do que está falando menina?! - disse o homem, sentindo-se ofendido, ao levantar-se.

"Ele usou o 'menina' para mostrar que me vê como criança?" devaneei.

- Ora, por que está me olhando desse jeito então?! - retruquei, já me sentindo envergonhada pelo que disse.

  Por um segundo ele hesitou em dizer, mas vendo a situação em que estava resolveu-se por contar.

- Porque você é idêntica a alguém que conheci!

  Fiquei ainda mais corada, desta vez por me dar conta da tamanha besteira que disse. Mesmo assim, o cientista parecia já haver esquecido o ocorrido, então tentei fugir ainda mais disso para me esquecer também.

- Alguém parecida comigo... - murmurei, vendo que ele ainda me observava com espanto.

- Sim - concordou - Amélia Sismary Gardenni.

  Me arrepiei com o som daquele nome, sentindo o tempo regredir a velhas lembranças com imagens e sons de minha infância.

- Essa é... a minha tia - admiti com o cair da ficha, e o homem ficou perplexo.

  A pessoa a minha frente permaneceu no mesmo lugar, imóvel, sem dizer nada, alternando sua visão entre mim e o desfoque do salão escurecido. Impaciente com sua resposta, me sentei no chão. Olhei para o celular deixado no chão, e lá estava exposto um número que reconheci rapidamente. Era o de minha tia Amélia, adicionado no topo de uma mensagem não enviada. Não me atrevi a ler a mensagem, nem eu sei porque, afinal era o tipo de coisa que eu faria, mas reconheci um nome autenticando no fim da mesma. Marco.

  O suposto Marco, passados uns três minutos se pôs a rir sem parar, ao mesmo tempo que chorava e tentava esconder isso com as mão percorrendo o rosto brutalmente e desgrenhando os cabelos.

- Do que está rindo?

  Ele olhou para mim, com um olhar indecifrável.

- Não é hilário?! Eu passar anos amando uma mulher para no fim nunca conseguir me declarar... - nessa hora ele parou de rir - E por que? Porque o mundo foi destruído por uma maldita incompatibilidade com as partículas temporais!!

  O fato dele ser apaixonado pela minha tia me deixou curiosa, no entanto, o que me chamou atenção foi a última parte de sua louca frase. Como se em meu cérebro houvessem encaixes de um quebra-cabeças, automaticamente comecei a organizar aquelas palavras. 'Incompatibilidade' pareciam referir-se às anomalias, sendo os "compatíveis" os icógnitas. Mas o que eram as 'partículas temporais' eu não soube dizer.

- Então... foi realmente aqui que tudo aconteceu... - pensei em voz alta, encarando os olhos de Marco que escondiam-se por debaixo de suas madeixas e suas lágrimas.

- Foi... - respondeu, com uma voz rouca e abafada pelas mãos.

- Sendo assim você pode nos fazer voltar, não é? - indaguei ao saltar do chão, agarrando as mangas de seu jaleco, como se lhe implorasse por isso - Nós podemos consertar as coisas que estiverem quebradas aqui e recriar a viagem no tempo!

- É impossível - falou Marco, quase inaudível.

- Por que?! Como pode ser impossível se você sabe como viajamos no tempo?!

- Porque foi um acidente.

  A voz de Alexander ressoou nos meus ouvidos.

"Se ele tivesse o poder para nos mandar de volta, já teria feito a essa altura"

- Não há como voltarmos no tempo - declarou o cientista com os olhos vermelhos de tanto chorar.

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora