Escasso

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  Sentados a mesa, em um trailer onde um morto jazia, com a companhia de meus recentes amigos, Eleonor nos contou de forma pouco minuciosa tudo que lhe ocorrera desde a nossa partida do passado. Enquanto eu comecei a ler, saltando inúmeros parágrafos, o seu livro. Os dois irmãos ouviram tudo atentamente, fazendo vez ou outra um comentário esquisito ou desnecessário, como "não acredito que esse Telh sobreviveu aquilo, ele era um alien?" ou mesmo "irmão, você me rejeitaria se eu virasse um monstro?" seguido de "mas é claro, quando você está brava realmente parece um".

  Após ouvir de forma breve os relatos da mulher, e de ver Serena chutar o seu irmão por debaixo da mesa várias vezes, chegou o momento de nós fazermos as nossas perguntas. Alex, com uma cara de desinteressado e debruçado sobre a mesa, iniciou o interrogatório.

- Diga-me, senhorita, como é o seu lado anomalia?

Eleonor pareceu não entender onde ele queria chegar, e muito menos eu.

- Como assim?

- Falo de sensações, força, rigidez, etc. Em comparação com o seu lado humano - explicou-se o garoto.

  Deixando a xícara de lado, a mulher ergueu e encarou o próprio braço, afim de tomar conclusões mais precisas quanto a sua forma.

- A sensibilidade é bem menor, eu poderia abrir um corte nele e mesmo assim nem sentiria - apesar de ser algo impressionante, Eleonor contava isto como um lamento - É bem rígido se comparado ao de um humano, e creio poder levantar um carro com um braço só.

- Acredita que uma bala ou uma faca comum seriam capazes de perfurá-lo? - desta vez foi Serena que perguntou.

- No caso de uma bala, teria de ser de calibre alto. E uma faca, sendo afiada, acho que qualquer uma seria suficiente.

  Os irmão de preto estavam completamente atentos, e Alex parecia refletir em silêncio sobre aquelas informações. Como se este fosse o ponto chave.

"E pensar que já enfrentei uma anomalia" devaneio sentindo um frio na espinha.

  Antes que eu pudesse pensar em uma pergunta para fazer, Alexander levantou-se bruscamente e estendeu a mão para a mulher.

- Bem, era isso. Muito obrigada Eleonor! Suas informações certamente serão úteis para salvarmos este mundo - falou o garoto, seguido por sua irmã, já saindo do trailer após um aperto de mãos.

- Ei! Espera! É só isso? Não vamos perguntar mais nada? - indaguei batendo, sem dar muita atenção, as mãos na mesa.

- Acho que entendi o que Alexander queria - declarou Eleonor, e virei meu rosto imediatamente para fita-la, ignorando os dois irmãos que já caminhavam sem mim - Ele queria saber sobre a minha constituição.

Mesmo ela dizendo aquilo, não entendi a relevância do assunto.

- Mas por que? Ou melhor, pra que?

- Para matar anomalias.

  A foto de Eugênio e sua filha veio a minha mente instantaneamente, e uma inquietude me tomou conta. Eles podiam ser monstros sangrentos, mas mesmo assim, também já foram humanos. Então matá-los seria como tirar a vida de um semelhante, querendo ou não, era algo de que eu era incapaz de fazer.

- Por que eles estão planejando matá-los? - perguntei, enquanto a mulher voltava a beber em sua xícara despreocupadamente - Se nós não nos aproximarmos deles, eles não nos farão mal.

Eleonor me lançou um olhar preocupado.

- Leslie, quantos cadáveres você já encontrou desde que chegou em 2307?

  Recordei do corpo que eu achara no pet-shop, dos que vira em ruelas enquanto caminhava e dos vários com que nos deparamos na estrada, em estado lamentável.

- Huh? Muitos eu diria.

- E quanto de comida você tem encontrado por ai?

  Somente então me dei conta de que realmente havia algo estranho naquele lugar, sendo mais clara, naquela situação. E de alguma forma comecei a entender o raciocínio de Eleonor.

- Anomalias sentem o mesmo nível de fome que um humano normal, apesar de preferirem carne do que outras coisas. É por isso que elas sobreviveram durante todos estes anos. Saqueando casas em busca de comida. No entanto, a comida está acabando, se encontra escassa - Eleonor estava com um olhar assustador - O dia está chegando. Muitas ainda não deram-se conta da presença dos incógnitas, mas não vai demorar até que venham caça-los, e talvez até a mim.

- Está dizendo que o que encontrei...

- Sim, foram vitimas de anomalias sedentas. Os quais já devem ter sido digeridos.

  A mulher se levantou e dirigiu-se até a porta do trailer, e só então notei que os irmãos me esperavam do lado de fora.

- Mas, muitos dos corpos que encontrei estavam em perfeito estado! Por que não os comeram de uma vez? - interroguei, voltando a temer ser devorada por aquelas feras como da última vez que as vira.

- Estes monstros sentem a mesma fome que a de um humano, então dificilmente irão comer alguém inteiro de uma vez só. Sem mencionar que anomalias são feras, não seria nada estranho se estivessem guardando o "prato" para depois. É por isso que aqueles dois vieram aqui, para saberem como lidar com estas feras antes que tenham de ficar cara a cara com uma.

  Sem palavras quanto aquilo, e reconhecendo a necessidade daquelas informações, eu simplesmente agradeci a Eleonor, que disse para voltarmos sempre que pudermos. "Ela não recebe muitas visitas" pensei eu sarcasticamente.

  A mulher nos conduziu até o fim da rua, ainda nos desejando boa sorte em nossa busca e dizendo para tomarmos cuidado. Mas foi somente então que aquelas pessoas apareceram.

  Por trás de nós surgiram duas silhuetas, que nos surpreenderam com um tiro para o céu. Ao ver a expressão atônita de Eleonor, nos viramos as pressas e vimos uma mulher segurando uma pistola e um homem apontando de olhar sanguinário, com um rifle apontado para a cabeça de Eleonor.

- Parece que seus banquetes também são servidos durante a luz do dia, não é?! - gritou o homem - Aberração!!

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora