Laboratório

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  Nossa última esperança. Minha última empreitada. A chave para tudo voltar a ser o que era. Fosse o que fosse, a única certeza de que eu tinha era que, estava nos confins daquele prédio imundo. Diferente dos outros lugares que frequentara, o local estava razoavelmente iluminado. Isto porque haviam inúmeras rachaduras no teto, para ser mais exata, buracos, pois atravessavam dois telhados.

"Uma anomalia fez isso?" Questionei-me.

  O chão estava todo molhado, devido a chuva, então a luz me foi uma grande aliada para não tropeçar e cair naquele mar de sujeira. A água estava na altura dos meus calcanhares, de forma que tive que remar para me locomover, como se minhas pernas fossem remos. Enquanto minhas pernas congelavam com o frio da umidade, comecei a observar melhor o lugar. Haviam várias mesas e cadeiras espalhadas na primeira sala, além de um computador ainda se deteriorando na água, com uma grossa camada negra sabe-se lá do que. Entrei em um longo corredor que fazia uma curva bem ao longe, onde várias portas podiam ser vistas.

  Pela pura curiosidade, abri uma porta ao acaso. Esta estava escura, de forma que tive de me esforçar para identificar o que havia ali. Garrafas e tubos de ensaio jaziam sobre uma mesa de ferro e estilhaçados no chão, seco. Um esqueleto estava estirado no centro da sala. Me peguei pensando se aquilo era falso ou de verdade, mas não tentei me certificar disso. Um pouco mais a frente, bem mais, abri mais uma porta.

  Tomei 'baita' susto, mas antes que o medo me fizesse gritar, o frio em minhas canelas deixou-me consciente o suficiente para saber que estava segura.

  No canto da sala tomada pela água, a qual deu um banho gélido em minhas pernas expostas quando abri a porta, estava uma anomalia. O monstro estava debaixo de uma enorme prateleira, visualmente pesada, que cobria todo o seu corpo, deixando apenas a sua cabeça e uma garra livres.

- Esse cara não teve sorte... - contei uma piada infame e dei uma risada forçada, lutando contra o terror.

  O óbvio era eu sair dali, ou mesmo matar aquela fera. Mas eu não era como Ramon. Sabia que no fundo daquela selvageria brutal sufocava-se um coração pulsante, um respingo de humanidade que morria aos poucos. Entretanto, mesmo repetindo isso para mim mesma, eu ainda tinha medo das anomalias. Eram seres aparentemente horrendos que desejavam me destroçar.

  Caminhei, ou nadei, bem devagar em direção à criatura. Parecia que estava se afogando antes deu chegar, mas ainda estava viva. Respirando lentamente em harmonia com minhas passadas contra a água. Eu já estava próxima de sua garra, então parei, e fiquei olhando para aqueles olhos.

- Você... consegue falar? - perguntei, apesar de incrédula.

  O monstro não respondeu, apenas permaneceu em seu silêncio eterno. Pensei em ajuda-lo, mas sabia que era tolice. Só assim percebi o impasse que era para mim as anomalias do tempo. Eu era incapaz de matá-las, mas ao mesmo tempo incapaz de ajuda-las.

  O dia está chegando' estas palavras zuniram em meus ouvidos e recordaram-me do que ainda estava por vir. Do verdadeiro inferno que poderia presenciar, da pura carnificina da qual a terra se tornaria palco.

- Me desculpe... - murmurei para a criatura, com sons que pareciam incompreensíveis para sua mente - O dia está chegando.

  Eu lutei. Lutei. E voltei a lutar. Mas o medo me venceu. Assim como ele sempre fazia. Como um herói de tv que espera o último minuto para derrotar o rival, como um arco-íris que espera os últimos pingos de chuva para surgir, como... como...

  Fechei a porta, trancafiando-o de volta em sua prisão d'água, onde estava condenado a morrer em breve. Ignorei as demais portas e virei o corredor. A minha frente haviam várias estantes, como a da última sala, dispersas ao longo do caminho. Pareciam obstáculos, impedindo que quisesse chegar a porta final, no fim do corredor.

- Quem colocou isso aqui?

  Tentei, sem sucesso, empurrar as estantes. Mas como suspeitara eram pesadas demais. Mas sem dúvida alguma, aquilo não era de longe um obstáculo destinado a mim, pois com meu pequeno corpo podia me espreitar por entre os vãos que deixava no canto da parede.

- Isto é... - pensei em voz alta, já retornando aos meus velhos hábitos de solidão fixados em mim - para deter anomalías...

  Pensei na cena do monstro na sala, que parando para pensar, talvez estivesse ali a bastante tempo. Talvez alguém tivesse visto a criatura debilitada contra o peso daquelas estantes, então resolveu usá-las como barreiras para impedí-las.

"Então realmente há alguém no fim deste corredor" pensei.

  Usando o meu tamanho, comecei a me esgueirar, atravessando as barreiras para anomalias como uma ladra profissional. Por estar molhada, pude passar tranquilamente mesmo pelas mais pequenas passagens. E logo, cheguei a porta. Estava trancada é claro. Retirei do bolso de meu casaco o objeto que vinha evitando, a pistola de raios.

  Rapidamente, apontei a arma e pressionei o botão como um gatilho. Uma forte luz branca saiu e um buraco fumegante substituiu o lugar da maçaneta em um tiro quase silêncioso. No mesmo instante, a porta se escancarou sozinha, dando-me boas vindas para um salão mergulhado na penumbra.

- Que conveniente... - deixei escapar, olhando para aquela arma esquisita da qual jamais ouvira falar na minha vida, completamente admirada com tal funcionalidade - onde diabos eles obteram isso?

  Voltei a caminhar. Era um lugar bem mais amplo do que as salas do corredor, com o teto mais alto e nada furado, apenas com algumas falhas na telha por onde deixavam luz escapar. Ainda atenta aos objetos e maquinários que ali haviam, ouviu um choro distante. Comecei a seguir o som, acreditando ter encontrado o que procurava. Atrás de uma prateleira de frascos vi uma luz, corri até lá, e foi então que me deparei com ele.

  Um homem, nada velho, com cabelos e olhos negros. Vestindo um jaleco branco, uma camisa de mesma cor e uma calça negra. Ele estava encolhido num canto, encostado na parede, com o rosto molhado e um celular nas mãos. Me aproximei, mas ele não percebeu.

- Gostaria de poder voltar no tempo... - lamentou o cientista, com arrependimento e dor lhe ferindo a cada sílaba.

  O homem voltou a chorar e minha esperança desapareceu.

Incógnitas - Anomalias do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora